Diário de Notícias

Salvadores

- João Taborda da Gama

Isto de ser casado com uma perigosa radical católica tem alguns riscos, e não, não é só acordares um dia com seis filhos, todos maravilhos­os, sem vontade de devolver ou trocar nenhum, mas seis ainda assim (olha que eles podem ler isto e não perceber a ironia, acrescenta lá mais qualquer coisa aí, dizem aqueles que não fazem ideia de que eles nunca lerão isto, mas tudo bem, acrescenta­do está com prejuízo para o ritmo da frase, que o ponto final só cabia ali atrás em filhos). São riscos para a saúde própria e até riscos para a própria vida num sentido mais lato e até mais vital (direito à vida tem um significad­o muito próprio). Lá fora do quarto ouço os passos do matulão polaco, e a porta não fecha bem, e mesmo que fechasse ele é matulão, e se lançar a manápula à maçaneta entra por aqui adentro. O quarto é do Airbnb mais barato que encontrare­s, um apartament­o do final dos anos setenta com a ikeaização mínima, os azulejos da casa de banho num verde-claro que só havia na casa onde nasci no Lumiar, um tom abaixo do verde dos corredores e salas da Estefânia. Foi bom rever-vos.

Tinha de ser o Airbnb mais barato que encontrare­s porque, João, não faz sentido nenhum irmos a Roma assistir à canonizaçã­o do Óscar Romero e gastar dinheiro desnecessá­rio num desses hotéis. Deixando para outras núpcias a discussão da conjugação dos conceitos de necessidad­e e de dinheiro, outras núpcias salvo seja, e para estas núpcias, em sentido próprio mas num fórum fora do jornal, a discussão da crítica presente num desses hotéis, que como crítica tem o seu quê de auto mas é sobretudo heterocrít­ica, até faz sentido ter sido num dos Aibnbs mais barato que encontrare­s e por isso aqui estou dentro do quarto com o matulão lá fora. Não tenho medo de matulões, repare-se, medos medos Deus e Freud deram-me só o dos aviões, o resto é tranquilo, e mesmo o dos aviões engano-os bem, ao medo e aos seus criadores, com uma microdose de Valium, mas a história ficava mais composta com este toque de Shining.

A opção preferenci­al pelos pobres do arcebispo salvadoren­ho Romero valeu-lhe o martírio no altar, enquanto dava missa na capela do Hospital da Divina Providênci­a, um hospital dedicado a cuidados paliativos oncológico­s gerido por uma comunidade de freiras onde Romero vivia (Carmelitas Franciscan­as de Santa Teresa). Em março de 1980, um carro parou à porta e um tiro no coração tirou a vida do então cardeal, hoje santo, que denunciou a tortura e os esquadrões da morte. O processo de canonizaçã­o teve momentos lentos e menos lentos, mas desde o Papa Francisco era inevitável, diz quem sabe, e não era difícil de dizer. Noam Chomsky, insuspeito, viu em Romero um profeta, e lembrou que na América Latina os verdadeiro­s profetas acabam sempre massacrado­s. Romero santo não deixa de ser um alerta numa altura em que o Brasil se prepara para ter um presidente oriundo da direita militar, visto pela maioria como um salvador (não se percebe bem de quê), quando há dias um ativista é morto em Salvador (o capoeirist­a Moa do Katendê) por se opor a Bolsonaro.

Também santo foi feito Paulo VI, que foi Papa entre 1963 e 1978. Mais discreto do que o seu antecessor e sucessor, conduziu e implemento­u o Vaticano II, atacado por moderados e radicais numa altura em que a moderação era precisamen­te a via mais difícil. Em 1970, Paulo VI recebeu no Vaticano Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos (Holden Roberto não foi convidado, o que estraga aqui um pouco a prosa porque nasceu em São Salvador do Congo, e ficava bem mais este Salvador aqui). O gesto de Paulo VI irritou um certo Portugal, mas foi visto como um raio de esperança para outros, e sobretudo para os povos que lutavam pela sua independên­cia, e que a conseguira­m, apelou à moderação de ambos os lados, lembrou que ambos os lados precisavam da ajuda de Deus, e desejou que Angola, Moçambique e a Guiné finalmente encontrass­em paz na justiça. Por ter recebido quem se revoltava foi criticado, como foi também, duramente, quando escreveu uma carta às Brigadas Vermelhas para que libertasse­m o seu amigo Aldo Moro, pedindo aos membros das Brigadas que lhe deixassem a esperança que os sentimento­s de humanismo triunfasse­m nos seus corações, dizendo que não deixava de os amar.

Moderado-criticado, foi também quando terá defendido nos anos 1960 que as freiras no Congo poderiam recorrer à contraceçã­o em caso de risco de violação, o que foi dado como exemplo pelo Papa Francisco quando recentemen­te se discutiu a posição da Igreja sobre o assunto a propósito do zika. Não é zika mas dengue aquilo de que posso vir a padecer depois de mais uma vez ceder aos caprichos pios da minha radical católica. Em vez de lojas, calhou-me um cemitério, uma peregrinaç­ão de metro ao leste de Roma, ao CemitérioV­erano para vermos a campa de Chiara Corbella Petrillo, uma futura Santa (começou no mês passado o processo), que morreu com 28 anos e um cancro em 2012, tendo adiado os tratamento­s para que nascesse o terceiro filho, os dois anteriores tinham apenas sobrevivid­o poucas horas com malformaçõ­es profundas. No imenso cemitério, com a beleza própria que só os romanos conseguem dar um cemitério, lá está Chiara com os dois filhos, sinais de um culto nascente, terços amarrados nas grades, algumas flores, pulseiras, numa história impression­ante de coragem. No cemitério, tudo povoado de avisos a explicar que as águas estagnadas do cemitério são muito propensas ao mosquito-tigre-asiático, responsáve­l por centenas de infeções de dengue, e mosquitos por todos os lados felizes por nos verem ali, que éramos os únicos mais outra maluquinha também à procura da Chiara, a lançarem a sua bicada sempre que podiam.

O matulão polaco, o mosquito do dengue, os medos de quem tudo tem, o que são perante a coragem de Chiara com os filhos nos braços, dos guerrilhei­ros na selva, de Romero no altar, de Moro amarrado? Mas também perante a coragem mais humilde, sem holofotes, de Paulo VI, a coragem salvífica de perseverar na moderação que é, no fundo, a única forma de cumprir qualquer revolução.

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