Diário de Notícias

Entrando e saindo da zona fantasma

A americana Peggy Sue Rackham precisou de morrer para provar que existiu de verdade. Até então, pensava-se que era uma figura de ficção, título da canção de Buddy Holly.

- Ruy Castro Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, Chega de Saudade – A História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta da China).

“Agente morre é para provar que viveu.” Quem disse isso mesmo? Não, não foi o conselheir­o Acácio, embora a frase ficasse bem na sua boca. Foi Guimarães Rosa, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967. Rosa morreria três dias depois, de infarto, em seu apartament­o em Copacabana, o que, para muitos, foi um gesto exagerado para confirmar a sua frase. Achávamos que os seus livros Sagarana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas já eram mais do que suficiente­s para justificar uma vida.

Já a americana Peggy Sue Rackham precisou morrer, outro dia, em Lubbock, no Texas, aos 78 anos, para provar que existiu de verdade. Até então, pensava-se que era uma figura de ficção, personagem-título da canção Peggy Sue, de Buddy Holly, cantor e compositor pioneiro do rock and roll, em 1957. Foi um dos primeiros clássicos do novo ritmo, apesar de a letra rimar “Peggy Sue” com “I love you” e, em seu melhor verso, Buddy cantar: “Oh, Peggy, my Peggy Sue, ue-ue-ue-ue-ue-ue-ue.” Sabe-se agora que Peggy Sue Rackham foi a inspirador­a da canção, e isso a fez passar toda a sua vida sentindo-se imortal – sensação esta subitament­e interrompi­da por sua morte.

O que ela fez para merecer a honra de ter o seu nome no título de uma canção de sucesso? Levou um esbarrão. Um ano antes, em 1956, aos 16 aninhos, Peggy Sue vinha distraída pelo corredor do colégio, em Lubbock, carregando os seus livros, quando um estudante chocou com ela sem querer. Os seus livros foram ao chão e ela também. O estudante, um rapaz de óculos ao estilo de Harold Lloyd, desculpou-se, mas disse que estava com pressa e não podia ajudá-la a se levantar ou a recolher os livros. E foi embora. Mas Peggy não se ofendeu. Dias depois, descobriu que o seu namorado, Jerry Allison, que era baterista, iria trabalhar no conjunto musical do rapaz de óculos, o qual se chamava Buddy.

Buddy Holly, com o seu visual de garoto tímido e certa bossa para cantar, foi contratado pela gravadora Coral. Já com os seus primeiros singles em 45 rpm, arrebatou os Estados Unidos. O apresentad­or Ed Sullivan convidou-o a aparecer em seu programa de TV e, para isso, Buddy preparou uma música, Cindy Lou. Jerry, ainda seu baterista, ouviu-a, gostou e pediu a Buddy para rebatizá-la de Peggy Sue, em homenagem à sua namorada. Buddy concordou – não fazia a menor diferença, já que Cindy Lou não existia, e as rimas eram iguais. E, então, Peggy Sue tornou-se a número 1 do hit parade mundial, e Peggy Sue Rackham sentiu-se, de repente, passageira da glória.

Buddy Holly morreria dali a pouco mais de um ano, em fevereiro de 1959, aos 22 anos, de um desastre de avião. E, então, muita coisa aconteceu. O rock and roll também morreu. Mas, alguns anos depois, com a chegada dos Beatles e dos Rolling Stones, ressuscito­u espetacula­rmente, agora apenas como rock – e, neste, cantores de óculos e com cara de bons meninos não tinham mais lugar. Buddy Holly foi comparativ­amente esquecido, assim como outros heróis de sua geração – Bill Haley, Little Richard, Jerry Lee Lewis –, e Peggy Sue ficou como uma espécie de hino do Velho Testamento, uma nostalgia dos tempos da brilhantin­a. Os fãs de Frank Zappa deviam achar ridícula aquela história de “Peggy Sue, ue-ue-ue-ue-ue-ue-ue”. E, com isso, Peggy Sue Rackham foi catapultad­a para a zona fantasma.

Passaram-se várias eras geológicas e, em 1986, um filme de Francis Ford Coppola, Peggy Sue Got Married, trouxe momentanea­mente de volta a canção. Peggy Sue, mais uma vez, acreditou que era com ela – que Kathleen Turner interpreta­va o seu papel. Mas o filme foi esmagado por Regresso ao Futuro, lançado na mesma época e tratando do mesmo assunto de viagem no tempo, e lá se foi a pobre Peggy Sue de novo para a zona fantasma. Em 2007, para comemorar os 50 anos da canção que ficara no passado, ela publicou um livro de memórias, cujo título era a pergunta que ninguém fazia: Whatever Happened to Peggy Sue? (O Que Aconteceu a Peggy Sue?). Por falta de assunto, o livro também foi um fiasco. Só restou a Peggy esperar que, em algum momento, Buddy Holly ressuscita­sse e fizesse um milagre ao terceiro dia, devolvendo Peggy Sue ao hit parade. Como isso também não aconteceu, Peggy Sue, cansada de esperar, resolveu ir tomar satisfaçõe­s com o próprio Buddy no céu.

Bem, pelo menos para uma coisa a sua morte serviu – para ela provar que viveu.

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