A morte lenta das democracias
Não vivemos apenas na era da ansiedade, mas na da testosterona política, a das vitórias dos homens fortes, o que não quer dizer preparados, qualificados, ou com uma especial autoridade democrática incorruptível. Bem longe disso. A ascensão pistoleira de Bolsonaro, a miserável durabilidade de Maduro, a tentacular corte de Orbán, Kaczynski, Putin e Erdogan, ou a enxurrada demagógica de Trump e Salvini, colocam mais cedo ou mais tarde, de forma mais abrupta ou progressiva, uma questão essencial: podemos acomodar um regime iliberal, autoritário e socialmente divisionista, e ao mesmo tempo manter uma economia aberta, uma sociedade livre e instituições políticas saudáveis? A resposta é não. Ao contrário do que apregoam os populistas de mão na Bíblia, fingindo querer preservar o melhor das democracias mas impondo um nacionalismo ideológico no edifício do Estado, não há qualquer compatibilidade entre os dois universos: as liberdades não sobrevivem ao apelo autoritário, seja este eterno ou intermitente, nas nossas sociedades.
Não é por Bolsonaro ter um programa de privatizações e baixa de impostos que a sua incompetência política e a agressividade social brasileira por ele incitada vão de um momento para o outro acomodar a economia, tornando-a mais forte ou mais bem distribuída. O que até poderia ser convidativo para investidores estrangeiros com interesse nas privatizações do Brasil, não tem condições para ser posto em prática num clima diário de anulação de uma das regras básicas, não escritas, da democracia: a tolerância mútua entre os vários campos ideológicos opostos. Ou, sendo mais concreto, o entendimento entre os principais partidos políticos de que deve existir uma aceitação mútua como rivais legítimos, cujo exercício do poder se fará sempre dentro das regras constitucionais. Como temos visto na campanha brasileira, mas também em vários momentos da administração Trump – já para não falar no absolutismo de Putin e Erdogan –
O Brasil de Bolsonaro, a América de Trump, a Venezuela de Maduro, a Rússia de Putin, a Hungria de Orbán, a Turquia de Erdogan, a Itália de Salvini. Mais Le Pen, Kaczynski, Gauland, Strache, Wilders, Baudet, Sneider e Siderov. Será o apelo pelo autoritarismo eterno? Quantos anos mais terão as democracias liberais? E quem as defende contra o avanço nacionalista?
isto está a desaparecer ou deixou mesmo de existir. Tal como em qualquer ascensão populista com demagogos carismáticos, o momento é muito mais exigente para quem os tenta derrotar do que para quem adere à sua cartilha. Aos primeiros pede-se que desconstruam em simultâneo os seus próprios vícios, mas também o simplismo da agenda adversária. Aos segundos, basta continuar a vender o menu da mesma forma, desprovida de uma especial crença ideológica profunda ou à conta de uma vaga de violência para tomar o poder a qualquer custo. Para estes, tem bastado a criação de uma realidade alternativa, mais ou menos articulada, preenchida por teorias da conspiração, capazes de segmentar a audiência, fazendo uso e abuso maciço da tecnologia comunicativa. Em rigor, os populistas formatam com sucesso a maneira de ver a política dos seus seguidores, isolando-os do impacto das notícias negativas e do escrutínio unicamente feito pelos media livres.
Bastaria esta razão de saúde pública democrática para lutarmos por um jornalismo muito mais independente do que temos, muito mais alerta, mais apetrechado para fazer sem tréguas o que diariamente deve: procurar a verdade e contá-la. Doa a quem doer. Protelamos esta independência porque o “modelo de negócio está em transformação” e “já ninguém lê jornais”, o que em último caso implica fechar de vez a porta e mudar de setor. Acontece que sem este setor, sem media independentes e credíveis, não há sequer uma linha descortinável entre a verdade e a mentira no espaço público. É a anarquia total, o livre-arbítrio interpretativo, a massificação das vulnerabilidades entre os tais segmentos da audiência à mercê das várias estirpes populistas, com o nacionalismo racista e violento como último grau.
Nessa altura, os agentes económicos que operam e prosperam nas sociedades livres e abastadas, com um pé nos media ou não, vão perceber o que custa sobreviver num sistema autoritário, num espaço de regras autoimpostas por uns poucos sem quaisquer garantias de cumprimento
As liberdades não sobrevivem ao apelo autoritário, seja este eterno ou intermitente, nas nossas sociedades.
constitucional, separação de poderes e respeito pelo Estado de direito. Vão perceber que o escrutínio e a investigação à corrupção nas nossas democracias, que anda a matar jornalistas na União Europeia a sangue-frio por fazerem e bem o seu trabalho, acabou por transformar uma sociedade livre, tolerante e aberta, num sítio irrespirável para as famílias e para as empresas. Nessa altura, tarde de mais, farão uma de três opções: fugir, lutar ou vergar. Aposto que a opção do meio será a menos adotada.
Que duração terá, então, a democracia liberal tendo em conta o mapa galopante de camisas negras telegénicas que por aí anda? Diria que o tempo que os que a defendem assim quiserem. A política não pode continuar a estar povoada sem o cumprimento de um código ético e de transparência inquebrantável. Um padrão assumido por todos os titulares de cargos públicos e adotado pelas respetivas culturas institucionais. Nunca será para amanhã, mas pode garantir que o dia seguinte continuará respirável em democracia. A mistura explosiva entre corrupção endémica, tribalismo político, mentiras destravadas e total impreparação para o exercício do poder, mantra que atravessa muitas sociedades democráticas ocidentais, não pode deixar de ter uma prescrição médica, uma desintoxicação cuidada e uma apurada atenção de todos aqueles que querem preservar e melhorar as democracias liberais em que queremos continuar a viver, a crescer profissionalmente e a educar os nossos filhos.
Na Europa, conseguimos ultrapassar duas guerras mundiais, duas grandes depressões financeiras, uma Guerra Fria e sangrias humanitárias nos Balcãs, superando degraus impossíveis até consolidarmos um continente de democracias. Não percamos diariamente esta conquista de vista. Ela custou a vida a muitos, para que muitos mais pudessem dela usufruir. A verdade é que continua quase tudo por fazer.
Investigador universitário