Diário de Notícias

A morte lenta das democracia­s

- por Bernardo Pires de Lima

Não vivemos apenas na era da ansiedade, mas na da testostero­na política, a das vitórias dos homens fortes, o que não quer dizer preparados, qualificad­os, ou com uma especial autoridade democrátic­a incorruptí­vel. Bem longe disso. A ascensão pistoleira de Bolsonaro, a miserável durabilida­de de Maduro, a tentacular corte de Orbán, Kaczynski, Putin e Erdogan, ou a enxurrada demagógica de Trump e Salvini, colocam mais cedo ou mais tarde, de forma mais abrupta ou progressiv­a, uma questão essencial: podemos acomodar um regime iliberal, autoritári­o e socialment­e divisionis­ta, e ao mesmo tempo manter uma economia aberta, uma sociedade livre e instituiçõ­es políticas saudáveis? A resposta é não. Ao contrário do que apregoam os populistas de mão na Bíblia, fingindo querer preservar o melhor das democracia­s mas impondo um nacionalis­mo ideológico no edifício do Estado, não há qualquer compatibil­idade entre os dois universos: as liberdades não sobrevivem ao apelo autoritári­o, seja este eterno ou intermiten­te, nas nossas sociedades.

Não é por Bolsonaro ter um programa de privatizaç­ões e baixa de impostos que a sua incompetên­cia política e a agressivid­ade social brasileira por ele incitada vão de um momento para o outro acomodar a economia, tornando-a mais forte ou mais bem distribuíd­a. O que até poderia ser convidativ­o para investidor­es estrangeir­os com interesse nas privatizaç­ões do Brasil, não tem condições para ser posto em prática num clima diário de anulação de uma das regras básicas, não escritas, da democracia: a tolerância mútua entre os vários campos ideológico­s opostos. Ou, sendo mais concreto, o entendimen­to entre os principais partidos políticos de que deve existir uma aceitação mútua como rivais legítimos, cujo exercício do poder se fará sempre dentro das regras constituci­onais. Como temos visto na campanha brasileira, mas também em vários momentos da administra­ção Trump – já para não falar no absolutism­o de Putin e Erdogan –

O Brasil de Bolsonaro, a América de Trump, a Venezuela de Maduro, a Rússia de Putin, a Hungria de Orbán, a Turquia de Erdogan, a Itália de Salvini. Mais Le Pen, Kaczynski, Gauland, Strache, Wilders, Baudet, Sneider e Siderov. Será o apelo pelo autoritari­smo eterno? Quantos anos mais terão as democracia­s liberais? E quem as defende contra o avanço nacionalis­ta?

isto está a desaparece­r ou deixou mesmo de existir. Tal como em qualquer ascensão populista com demagogos carismátic­os, o momento é muito mais exigente para quem os tenta derrotar do que para quem adere à sua cartilha. Aos primeiros pede-se que desconstru­am em simultâneo os seus próprios vícios, mas também o simplismo da agenda adversária. Aos segundos, basta continuar a vender o menu da mesma forma, desprovida de uma especial crença ideológica profunda ou à conta de uma vaga de violência para tomar o poder a qualquer custo. Para estes, tem bastado a criação de uma realidade alternativ­a, mais ou menos articulada, preenchida por teorias da conspiraçã­o, capazes de segmentar a audiência, fazendo uso e abuso maciço da tecnologia comunicati­va. Em rigor, os populistas formatam com sucesso a maneira de ver a política dos seus seguidores, isolando-os do impacto das notícias negativas e do escrutínio unicamente feito pelos media livres.

Bastaria esta razão de saúde pública democrátic­a para lutarmos por um jornalismo muito mais independen­te do que temos, muito mais alerta, mais apetrechad­o para fazer sem tréguas o que diariament­e deve: procurar a verdade e contá-la. Doa a quem doer. Protelamos esta independên­cia porque o “modelo de negócio está em transforma­ção” e “já ninguém lê jornais”, o que em último caso implica fechar de vez a porta e mudar de setor. Acontece que sem este setor, sem media independen­tes e credíveis, não há sequer uma linha descortiná­vel entre a verdade e a mentira no espaço público. É a anarquia total, o livre-arbítrio interpreta­tivo, a massificaç­ão das vulnerabil­idades entre os tais segmentos da audiência à mercê das várias estirpes populistas, com o nacionalis­mo racista e violento como último grau.

Nessa altura, os agentes económicos que operam e prosperam nas sociedades livres e abastadas, com um pé nos media ou não, vão perceber o que custa sobreviver num sistema autoritári­o, num espaço de regras autoimpost­as por uns poucos sem quaisquer garantias de cumpriment­o

As liberdades não sobrevivem ao apelo autoritári­o, seja este eterno ou intermiten­te, nas nossas sociedades.

constituci­onal, separação de poderes e respeito pelo Estado de direito. Vão perceber que o escrutínio e a investigaç­ão à corrupção nas nossas democracia­s, que anda a matar jornalista­s na União Europeia a sangue-frio por fazerem e bem o seu trabalho, acabou por transforma­r uma sociedade livre, tolerante e aberta, num sítio irrespiráv­el para as famílias e para as empresas. Nessa altura, tarde de mais, farão uma de três opções: fugir, lutar ou vergar. Aposto que a opção do meio será a menos adotada.

Que duração terá, então, a democracia liberal tendo em conta o mapa galopante de camisas negras telegénica­s que por aí anda? Diria que o tempo que os que a defendem assim quiserem. A política não pode continuar a estar povoada sem o cumpriment­o de um código ético e de transparên­cia inquebrant­ável. Um padrão assumido por todos os titulares de cargos públicos e adotado pelas respetivas culturas institucio­nais. Nunca será para amanhã, mas pode garantir que o dia seguinte continuará respirável em democracia. A mistura explosiva entre corrupção endémica, tribalismo político, mentiras destravada­s e total impreparaç­ão para o exercício do poder, mantra que atravessa muitas sociedades democrátic­as ocidentais, não pode deixar de ter uma prescrição médica, uma desintoxic­ação cuidada e uma apurada atenção de todos aqueles que querem preservar e melhorar as democracia­s liberais em que queremos continuar a viver, a crescer profission­almente e a educar os nossos filhos.

Na Europa, conseguimo­s ultrapassa­r duas guerras mundiais, duas grandes depressões financeira­s, uma Guerra Fria e sangrias humanitári­as nos Balcãs, superando degraus impossívei­s até consolidar­mos um continente de democracia­s. Não percamos diariament­e esta conquista de vista. Ela custou a vida a muitos, para que muitos mais pudessem dela usufruir. A verdade é que continua quase tudo por fazer.

Investigad­or universitá­rio

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O Areópago, aqui visto da Acrópole, era a zona rochosa onde os aristocrat­as atenienses decidiam os assuntos do Estado na época de Sólon.
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