Procurações atmosféricas complicadas
A Procuradora, não a ex nem a atual mas a única, a verdadeira, a da SIC, é aqui abordada . E logo a seguir fala-se de W.C. Fields no Alasca. E essa é uma das razões de o DN publicar o Casanova.
Um fenómeno atmosférico de grandes dimensões aproximava-se do território nacional. A SIC foi anunciando a chegada com curtos, mas ominosos, spots promocionais: “Procura... além da notícia rápida e seca... Procura... o que se esconde nas meias-verdades...” Girando no sentido dos ponteiros do relógio, obedecendo à força inercial de Coriolis (e a mais nenhuma!), o fenómeno prosseguia a sua marcha. “Procura... as contradições... Procura... as respostas que afinal ninguém deu...” A energia libertada pela condensação de publicidade vaporosa provocou um ciclo de retroalimentação positiva sobre as águas requentadas do comentário televisivo. “Todas as semanas, a Procuradora vai... procurar os mais variados temas... Procurar o que a espanta... ou deixou indignada... ou com esperança...”. Foi só prestes a chegar à costa que o cone de incerteza colapsou, e o fenómeno foi rapidamente despromovido a depressão pós-tropical: “Manuela Moura Guedes procura respostas... enquanto levanta questões.” As respostas foram procuradas segundo dois dos modelos habituais neste formato, o modelo “Havia quem dissesse que x” e o modelo “Há quem pense que x, mas afinal y”. Quem pensou x estava errado, enquanto a Procuradora (que sempre pensou y) estava correcta.
Um dos temas abordados foi o caso de Cristiano Ronaldo, no qual a Procuradora procurou e encontrou a seguinte conclusão: “É complicado.” “Há uma coisa que as pessoas têm de ter ciente”, anunciou, explicando de seguida as coisas que as pessoas têm de ter ciente. Os modelos seguidos foram os também populares “As pessoas querem x” e “As pessoas devem y”, sendo que x e y se encontram por vezes em contradição, porque – porque “de facto isto é muito complicado”.
Complicado é também explicar porque é que uma das melhores séries de televisão dos últimos anos (e talvez o melhor produto da Netflix) é Bojack Horseman, uma série de animação sobre um boneco com cabeça de cavalo. O protagonista é um ex-actor numa sitcom de sucesso, que vive num lugar chamado Hollywoo (alguém roubou a letra D), onde animais antropomórficos de todas as espécies interagem com seres humanos sem que ninguém pestaneje. A premissa é abertamente absurda, e serve de mote para uma enxurrada de piadas visuais (Mr. Peanutbutter, um cão, ergue as orelhas sempre que uma campainha toca, por exemplo). Há uma cultura subaquática que parece tão exótica aos animais de superfície como o Japão parece aos europeus. Há uma subcultura de ratos que perpetuam estereótipos negativos sobre gatos, com os consequentes tabus sociais. A série exibe a mesma densidade de textura dos Simpsons, em que nenhum milímetro quadrado de ecrã é demasiado pequeno para uma referência de meio segundo que se arrisca a ser notada por 1% da audiência.
Tematicamente, aventura-se por territórios menos explorados, e serve (com maior incidência a partir da terceira temporada, em que a qualidade sobe exponencialmente) como glosa ao tropo ficcional que definiu a televisão contemporânea de qualidade: o anti-herói depressivo e/ou desesperado, e com impulsos autodestrutivos. O facto de o fazer dentro dos ritmos tradicionais da sitcom clássica acaba por transformar o exercício na exploração de outro tema: a disparidade entre actos e consequências. Ao longo de 60 episódios, Bojack tenta ter sexo com uma menor, é responsável por levar pessoas à depressão ou ao suicídio, arruína várias vidas e aprende repetidamente a mesma lição: os actos que pratica não definem uma boa pessoa. Mas o contexto da sitcom aprisiona-o num mundo onde as repercussões nunca acompanham esta revelação: os seus amigos não o abandonam, a sua reputação não sofre perturbações significativas, as suas finanças permanecem estáveis, momentos trágicos são repetidamente quebrados por uma piada certeira. A narrativa nunca lhe oferece uma redenção, mas sim uma espécie de absolvição contínua e amnésica, transformando todas as vítimas em figurantes e notas de rodapé à sua trajectória, porque no formato da comédia televisiva não existem redenções ou condenações definitivas, mas apenas um ciclo perpétuo de anticlímax e reinício, sequestrando o protagonista e a centralidade das suas acções na segurança de um circuito fechado.
Na quinta e mais recente temporada, Bojack participa numa série dentro da série e, no meio de um delírio intoxicado, tenta estrangular a sua co-protagonista durante as filmagens. A pedido dela, o caso é abafado, com o fumo e espelhos das Relações Públicas. “Se houvesse justiça, ias parar à prisão”, explica-lhe, “mas eu não quero ficar conhecida apenas como a mulher que foi estrangulada pelo Bojack Horseman”. É complicado, como diria a Procuradora. Por vezes as pessoas devem x, mas fazem y, mesmo quando há motivos para z.
Muitas das nossas participações neste tipo de debates “controversos” resumem-se a procurar e encontrar, com mal contida satisfação disfarçada de escândalo, as versões mais simples de algo que já sentimos forte inclinação para elogiar ou criticar. Bojack Horseman usa a complexidade como mecanismo narrativo, não para instrumentalizar a sua utilidade circunstancial para as nossas posições prévias, mas para mostrar que os próprios hábitos televisivos formataram uma maneira de dividir a realidade entre os protagonistas (que têm sempre algo a perder, mesmo que raramente o percam) e os meros figurantes (os que não merecem protagonismo, mas o procuram). Uma complexidade que nos mostra como algumas pessoas definem os parâmetros da realidade e outras procuram o refúgio possível nos interstícios dessas definições; que nos mostra os sistemas que muitas vezes fazem da cumplicidade colateral a opção menos penosa. Nem sempre é fácil determinar o que é simples e o que é complicado, nem o que é verdade e o que não é; mas identificar com o devido cepticismo a verdade que preferimos à partida devia ser menos complicado.
Uma antiga curta-metragem de W. C. Fields, O Copo de Cerveja Fatal, mostra um pioneiro à mesa, numa rústica cabana no Alasca. Seis ou sete vezes, o pioneiro levanta-se, abre a porta e queixa-se do mau tempo: “Isto não é tempo para pessoas nem para animais!” Sempre que o faz, sopra uma revoada de vento, e uma carga de neve atinge-o em cheio na cara. É o método ideal para fazer reportagens sobre fenómenos meteorológicos, e a lição foi aprendida pela CNN, que envia os seus intrépidos repórteres para o exterior sempre que lhes aparece o seu próprio furacão no horizonte (nesta semana foi o Michael). O repórter materializa-se numa rua deserta, amarrado com cordas a um sinal de trânsito para não ser arrastado pelo vento. “Isto não é tempo para pessoas nem animais!”, informa-nos com simplicidade, enquanto se tenta desviar de rajadas de triciclos, cães e contentores do lixo, e é impiedosamente esbofeteado por chuva horizontal. Isto sim, é informação que conseguiu encontrar aquilo que procurava.