Diário de Notícias

“Tenha cuidado que os gatos rasgam a roupa às gatas”

Piropos. Comentário­s de cariz sexual foram criminaliz­ados, mas na rua nada mudou. As mulheres continuam a ter de ouvir as coisas mais ofensivas como se fosse normal.

- Ana Bela Ferreira

O título deste texto é apenas um dos mais recentes “piropos” com que fui brindada nas ruas de Lisboa (e não acredito que o problema seja da cidade, noutras será certamente igual). Gosto de andar a pé, nunca temi pela minha segurança, mas já perdi a conta aos comentário­s impróprios e muitas vezes intrusivos que já tive de ouvir. E não se pense que são apenas os culpados do costume – os trolhas –, muitas vezes estes comentário­s vêm de quem menos se espera: um senhor de idade avançada que se cruza connosco na passadeira (como foi o caso do que me deu o conselho sobre os gatos) ou até a pessoa de fato e gravata que espera pelo elevador ao nosso lado e usa o pior calão para descrever o órgão sexual feminino – e que quando me recusei a entrar no mesmo elevador sozinha com ele, ainda se indignou e garantiu-me que não precisava de ter medo.

Isto tudo, três anos depois de este tipo de comentário­s ter sido criminaliz­ado. É certo que as queixas são difíceis de isolar – o artigo 170.º do Código Penal inclui atos de carácter exibicioni­sta, propostas de teor sexual e contacto de natureza sexual –, mas têm sido cada vez mais. Foram instaurado­s 733 inquéritos, em 2016, e 865, em 2017. Os dados mais recentes mostravam que nenhum destes casos tinha chegado a tribunal. Talvez por isso, a atitude não tenha mudado e uma mulher que ande na rua sozinha ou acompanhad­a por outras está automatica­mente habilitada a ser alvo de uma graçola, que não pediu.

É certo que nem todos são ofensivos, como receber um pedido de casamento no meio da rua com a garantia de que se leva para casa um marido sério e trabalhado­r. Mas, fazendo parte da metade do país que de vez em quando tem de levar com estes elogios de mau gosto, só posso dizer que não é engraçado nem tão-pouco nos é indiferent­e. A verdade é que normalment­e ouço e não reajo, talvez porque ache que ignorar é a melhor forma de fazer que aquele momento termine rapidament­e, ou talvez porque me falta uma resposta à altura, na ponta da língua. Outras talvez tenham interioriz­ado aquele ditado da mulher séria que não tem ouvidos ou talvez temam represália­s. E, talvez por tanta gente reagir como eu, continua esta cultura em que é natural para os homens soltarem estas gracinhas sem se preocupare­m com o facto de as mulheres não as terem pedido...

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