“Tenha cuidado que os gatos rasgam a roupa às gatas”
Piropos. Comentários de cariz sexual foram criminalizados, mas na rua nada mudou. As mulheres continuam a ter de ouvir as coisas mais ofensivas como se fosse normal.
O título deste texto é apenas um dos mais recentes “piropos” com que fui brindada nas ruas de Lisboa (e não acredito que o problema seja da cidade, noutras será certamente igual). Gosto de andar a pé, nunca temi pela minha segurança, mas já perdi a conta aos comentários impróprios e muitas vezes intrusivos que já tive de ouvir. E não se pense que são apenas os culpados do costume – os trolhas –, muitas vezes estes comentários vêm de quem menos se espera: um senhor de idade avançada que se cruza connosco na passadeira (como foi o caso do que me deu o conselho sobre os gatos) ou até a pessoa de fato e gravata que espera pelo elevador ao nosso lado e usa o pior calão para descrever o órgão sexual feminino – e que quando me recusei a entrar no mesmo elevador sozinha com ele, ainda se indignou e garantiu-me que não precisava de ter medo.
Isto tudo, três anos depois de este tipo de comentários ter sido criminalizado. É certo que as queixas são difíceis de isolar – o artigo 170.º do Código Penal inclui atos de carácter exibicionista, propostas de teor sexual e contacto de natureza sexual –, mas têm sido cada vez mais. Foram instaurados 733 inquéritos, em 2016, e 865, em 2017. Os dados mais recentes mostravam que nenhum destes casos tinha chegado a tribunal. Talvez por isso, a atitude não tenha mudado e uma mulher que ande na rua sozinha ou acompanhada por outras está automaticamente habilitada a ser alvo de uma graçola, que não pediu.
É certo que nem todos são ofensivos, como receber um pedido de casamento no meio da rua com a garantia de que se leva para casa um marido sério e trabalhador. Mas, fazendo parte da metade do país que de vez em quando tem de levar com estes elogios de mau gosto, só posso dizer que não é engraçado nem tão-pouco nos é indiferente. A verdade é que normalmente ouço e não reajo, talvez porque ache que ignorar é a melhor forma de fazer que aquele momento termine rapidamente, ou talvez porque me falta uma resposta à altura, na ponta da língua. Outras talvez tenham interiorizado aquele ditado da mulher séria que não tem ouvidos ou talvez temam represálias. E, talvez por tanta gente reagir como eu, continua esta cultura em que é natural para os homens soltarem estas gracinhas sem se preocuparem com o facto de as mulheres não as terem pedido...