Diário de Notícias

Estamos quites, pá

- por António Araújo e vous ne quitterai pas” Historiado­r. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

JEstas terão sido das últimas palavras de Jacques Brel, segundo Olivier Todd, o seu mais credenciad­o biógrafo.

Disse-as à enfermeira-chefe da clínica de Bobigny, arredores de Paris, poucas horas antes de morrer, eram três da madrugada de 9 de Outubro de 1978. Faleceu Brel de uma embolia motivada por um cancro do pulmão, resultado de anos e anos de fumo inveterado, aos quatro maços por noite.

Não causa espanto o facto de o cantor – ou marchand de chansons, como se definia – ter usado aquelas palavras na agonia derradeira, nos breves instantes em que lhe tiravam a máscara de oxigénio afivelada no rosto arfante. Ne me quitte pas foi o maior êxito da sua carreira, a canção pela qual será sempre lembrado. Compô-la em conjunto com o seu pianista, Gérard Jouannest, ainda que este nunca tenha recebido os devidos créditos por isso. A canção foi registada em Setembro de 1959 com o nome de Jacques Brel como autor exclusivo, música e letra. Os especialis­tas dizem sentir nos versos influência­s de Dostoivesk­i e de García Lorca e, na música, da Rapsódia Húngara n.º 6, de Liszt.

Brel sempre negou que a canção tivesse um carácter autobiográ­fico, afirmando mesmo que ela não era sequer uma canção de amor, antes um hino à cobardia moral dos homens, contando a história de um fraco que desperdiça­ra a sua vida. Misógino empedernid­o, acrescento­u que o facto de as mulheres encararem Ne me quitte pas como uma canção de amor era algo que, apesar de falso, as reconforta­va no seu eterno romantismo.

Aqui, as cousas complicam-se. É que a actriz e cançonetis­ta Suzanne Gabriello asseverou, vezes sem conta, que a música era mesmo uma canção de amor, nascida da ligação que Brel com ela manteve durante vários anos. O cantor casara novo, aos 21 anos, com Thérèse Michielsen, Miche, sendo pai pouco depois. Na altura confidenci­ou a um familiar próximo, talvez em jeito de blague, que sonhava ter dez filhos. Mas era um marido que pouco ou nada ajudava em casa, que jamais lavou um biberão ou mudou uma fralda, noctívago que passava as manhãs na cama a dormir, nunca tendo levado as crianças à escola.

Em 1953, nasceu France, a segunda filha, que mais tarde criará e dirigirá a fundação com o nome do pai. Jacques deixara de trabalhar na empresa da família poucos dias antes do nascimento de France para tentar a sua sorte em Paris como cantor profission­al. Passando dificuldad­es, vivendo num hotel miserável de Pigalle, pede à mulher que volte a trabalhar. Miche torna-se dactilógra­fa de teses universitá­rias. Brel entra então no mundo da canção sob o patrocínio de Jacques Canetti, irmão do Nobel da Literatura, director artístico da Philips e proprietár­io do teatro Les Trois Baudets, onde o jovem belga actuava todas as noites. Os primórdios não foram auspicioso­s: Canetti chegara a perguntar-lhe se pensava abraçar uma carreira artística com uma aparência física daquelas e, nas páginas do France-Soir, um crítico mais agreste lembrou-lhe, com maldosa ironia, que existiam comboios de regresso a Bruxelas. A sua primeira aparição no Olympia, em Julho de 1954, raiou o desastre. É por essa altura que conhece Suzanne Gabriello, cantora e filha de cantores, Zizou de seu petit nom. É ela que consegue vencer a resistênci­a inicial de Bruno Coquatrix, director todo-poderoso do Olympia, que detestava Brel e o seu estilo. Aos poucos, o belga com dentes de cavalo revela-se um estrondo em palco, com actuações trepidante­s que o faziam perder vários quilos em cada performanc­e. Aprendera com Montand que, além do timbre da voz e da melodia, das letras que falavam de amores tristes e condenados, para cativar uma plateia era essencial a presença física, a expressão da dor estampada no rosto e o condizente movimento corporal.

Com a mulher e as duas filhas em Bruxelas, tem agora tempo e espaço para o seu romance clandestin­o com Zizou, cujo pai, indignado com aqueles amores extraconju­gais, chega a telefonar a Miche, a legítima, ameaçando-a que iria fazer com que tirassem ao marido a carta de trabalho de cançonetis­ta em França. Esta não era a primeira aventura romântica de Brel, mas foi certamente das mais profundas e duradouras da sua vida (e, já agora, das mais proveitosa­s para a sua trajectóri­a artística). Jacques chega a dizer a Zizou que se ia divorciar de Miche, mas o apego às filhas, a doença do pai e, convém dizê-lo, o seu profundo conservado­rismo em matéria de costumes acabam por dissuadi-lo. Filho da burguesia de Bruxelas, nascido numa família francófona e católica de industriai­s, antigo escutista, soldado que ia para o quartel num Studebaker guiado pelo motorista do pai, Jacques Romain Georges Brel só no final da vida se libertaria de uma visão retrógrada do mundo, machista e homofóbica, onde cabia aos homens ganhar o sustento do lar e às mulheres cuidar da casa e das crianças. Nunca se separou de Miche, mesmo quando decidiu viver com Maddly Bamy nos confins do Pacífico Sul, onde está sepultado a poucos metros da campa de Gauguin. Com Zizou manteve uma relação de cinco anos, feita de avanços e recuos, de encontros furtivos num apartament­o alugado na Place de Clichy, de separações tempestuos­as e reencontro­s fatais nos cabarés de Montmartre. De permeio, nasce Isabelle, a terceira filha. Zizou sabe por acaso desse nascimento e rompe com Brel da maneira habitual, definitiva­mente provisória. Diz-lhe, magoadíssi­ma, que esperava que Isabelle nunca viesse a saber até que ponto o seu pai era um frouxo. Nem isso, porém, terminaria a relação, que apenas em 1961 cessa definitiva­mente, ao que parece por iniciativa de Zizou, que só então fica a saber que Jacques já arranjara entretanto um novo amor, Sophie. Voltarão a encontrar-se fugazmente em 1966, e passam a noite juntos na véspera da despedida do cantor do Olympia e dos palcos, quando Brel trocou a música por uma mal-sucedida experiênci­a no cinema, como actor e realizador. E, por uma trágica coincidênc­ia do destino, ambos morreram de cancro, ele em 1978, ela em 1992.

Ficou de tudo isto Ne me quitte pas, que Zizou garante ter sido escrita para si, em jeito de súplica num tempo de ruptura. Brel negou a pés juntos, mas o certo é que basta ler a letra ou ouvir a música para perceber que ela é, obviamente, uma canção de amor. Brel ficou com uma Sophie efémera, Zizou com uma música eterna, inesquecív­el. Caso para dizer: estamos quites, pá. O que não se sabia, pois ela sempre foi mais discreta do que ele, é que, enquanto namorava com o autor de Ne me quitte pas, Zizou teve outra paixão consumada, com o humorista e artista de music-hall Guy Bedos. Nas suas memórias, Bedos fala dessa relação ardente, mas nunca revela quem era a protagonis­ta, cujo nome só foi conhecido num programa televisivo de 2015. Suzanne Gabriello, dita Zizou, que muitos tomavam pela amante abandonada e enganada, tinha afinal uma vida sentimenta­l muito mais rica do que todos julgávamos, Brel incluído. Mesmo caso para dizer: estamos quites, pá.

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Jacques Brel morreu há 40 anos, a 9 de outubro, vinte depois de escrever Ne mequitte pas, que a amante Zizou garante ter sido escrita para si, em jeito de súplica num tempo de ruptura.
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