A universal verdade dos mentirosos
Omeu avozinho era assassino! O meu, o nosso. Nos ibéricos, como eu, cem por cento dos cromossomas Y provêm dos yamnayas, o povo que há 4500 galgou os Pirenéus e por cá ficou. Eles vinham das estepes euro-orientais, traziam cavalos e carroças de quatro rodas, alta tecnologia e armas letais. Atravessaram a Europa e, custa dizê-lo, o vovô vinha com péssimas intenções. Cumpriu-as: há dias, o jornal El País publicou nas suas páginas de ciência um magnífico artigo sobre isso. As então mulheres ibéricas tinham utilidade e os yamnayas serviram-se dessa função: emprenharam-nas. Mas, para esses invasores, os ibéricos de então não serviam para nada (não havia agricultura nem indústria exigindo mão-de-obra). Inúteis, os indígenas foram abatidos.
Não há volta a dar, o meu tetravô estava do mau lado moral e do bom lado prático. Os outros foram dizimados; ele e os seus primos sobreviveram. Eu podia armar-me em vítima, afinal sou ibérico, e acusar aquela invasão continental – mais uma que o bicho homem fazia desde que partiu do Corno de África. Dedo estendido, eu apontava os yamnayas: eles mataram os meus conterrâneos! O problema são os dados genéticos. Eu e todos os novos ibéricos (também o leitor) não somos herdeiros das vítimas. Pelo contrário, descendemos dos assassinos. Vovô, apesar da vistosa carroça de tração a quatro rodas, era um bruto, violador de mulheres e assassino dos homens.
Felizmente, depois da matança em razia, o bicho homem continuou a andar – por terras e pela história. Num momento qualquer, os yamnayas e os outros iguais – isto é, do grupo dos mais bem artilhados que os menos protegidos (resumindo, a velha divisão entre os que têm e os que não têm) –, enfim, os fortes, começaram a perceber que os derrotados podiam ter um fim mais útil do que a degola imediata. Então, passaram-lhes cadeias nos tornozelos, medos na cabeça e chicote no pelo. E puseram as vítimas a trabalhar para eles. Comparado com a anterior matança generalizada, foi um grande salto para a humanidade. Não fosse aquilo chamar-se escravidão, ainda hoje teríamos um dia dedicado a saudar esse tão grande progresso.
Se calhar, progresso mesmo era termos ficado como os ibéricos que o meu avozinho assaltou e matou. Parece que era sociedade bastante igualitária e sem grande necessidade de cavalos e carroças de quatro rodas, como então se chamava aos aviões de combate F-22 Raptor e aos tanques K2 Black Panther. Nessa Ibéria feliz, os futuros falecidos passeavam pelos vales do Tejo e do Ebro, talvez usando coroas de flores nos cabelos. Se eu fizesse um filme sobre o assunto, figurava-os assim (por remorso capricharia nos adereços). Mas a verdade é que tanto progresso não os livrou do meu avô.
Esse episódio, o mais triste da minha família, julgo, que só há dias soube (pelo tal El País), pôs-me a olhar para as notícias com maior atenção. Porque é que gente com melhores sentimentos do que o meu avô se tramou? Dediquei a minha atenção não aos grandes acontecimentos (indo direito ao assunto: nem Trump nem Bolsonaro). Tentei catar no ar do tempo e descobri uma pista: por estes dias fala-se com mais verdade. E isso não é bom: fala-se é sem vergonha nenhuma. Fala-se como o meu avô violava e matava. Sem precisar de dar justificações a ninguém, pois despreza-se o outro.
Repito, não é sobre Trump e Bolsonaro que escre- vo. Eles (só de pensar que podiam ser meus antepassados, yamnayas dos maus velhos tempos, tremo) também falam sem o pudor oportunista com que os políticos antes resguardavam os seus discursos. Mas o mais interessante é a generalização dessa linguagem de mata e esfola, clara. Peguemos no caso dos dois espiões russos que foram a Inglaterra matar um ex-colega que se passara para o outro lado. Foram a casa dele em Salisbury, envenenaram o que tinham para envenenar e regressaram a casa.
Não se importaram de deixar pistas. Suspeitos, apareceram na televisão russa oficial com historietas despudoradas de terem ido a Salisbury invocando dados turísticos da cidade que vinham na Wikipédia. Tão descuidados, deixaram que os seus nomes reais aparecessem: são agentes da inteligência militar russa (GRU). Entretanto, outros espiões russos são apanhados em Haia, Holanda. Com sofisticados aparelhos faziam pirataria informática a partir de um carro estacionado frente à OIAC, organização que combate as armas químicas. Fora a OIAC que provara a origem russa do veneno usado em Salisbury.
Ora, os espiões russos de Haia eram um livro aberto: até faturas de táxis eles tinham de corridas apanhadas à porta da sede moscovita do GRU. A sinceridade, repito, é um dos vícios dos tempos de hoje. Um perigo, pois a mentira é uma homenagem ao interlocutor. O meu longínquo parente yamnaya não esteve com conversas quando arrumou os iberos que lhe couberam. Já os bisnetos dele não só não degolavam os seus escravos como os alimentavam. Mais recentemente, ainda há poucos anos, os descendentes do meu antepassado mentiam com belas promessas quando precisavam de ser ouvidos.
E agora é isto, palavras que não escondem. Pois não, só se mente quando não se despreza totalmente o outro.
A sinceridade, repito, é um dos vícios dos tempos de hoje. Diz-se tudo porque não há vergonha.