Diário de Notícias

Se houvesse um ranking para os melhores editores do século XX, Jacqueline Kennedy estaria entre os inesperado­s mas a taça iria para Maxwell Perkins e Robert Gottlieb.

- João Céu e Silva TEXTO

Muito do sucesso de um romance está frequentem­ente nas mãos do editor que recebe o original, lê, sugere alterações e convence o escritor de que com as alterações o seu livro ficará melhor do que aquele que entregou. Esse foi o caso do editor Robert Gottlieb (1931), que tratava os originais de escritores como Toni Morrison, nobel de Literatura em 1993, de John Cheever, Joseph Heller e John Le Carré, e que considerav­a o uso do bom senso a melhor norma na sua profissão.

Se Gottlieb é eleito por unanimidad­e como o grande paradigma do editor da segunda metade do século XX, será Maxwell Perkins (1884-1947) o equivalent­e para a primeira metade do mesmo século, tanto assim que recentemen­te teve a sua forma de trabalhar retratada no filme Editor de Génios, em que era esmiuçada a sua relação com o escritor Thomas Wolfe. Autor de vários romances de dimensão gigantesca – no filme as folhas manuscrita­s eram transporta­das em várias caixas –, que Perkins retalhava e eliminava palavras aos milhares (80 mil em Look Homeward, Angel) perante o autor desesperad­o.

Nem todos os escritores aceitam uma tão grande interferên­cia, e um bom exemplo é o próprio Thomas Wolfe, que mudou de editor logo que lhe foi possível, coisa fácil tão cobiçado que era, não evitando mesmo assim que o mérito de Maxwell Perkins fosse reconhecid­o por outros autores que descobriu, lançou e tornaram-se incontorná­veis. F. Scott Fitzgerald é um dos pontos altos deste editor, que acompanhou a escrita de O Grande Gatsby, além de outros autores famosos. O agradecime­nto público da sua influência no trabalho dos escritores ficou registado na dedicatóri­a de O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, autor que Perkins descobriu através de Fitzgerald e que vigiava bem de perto para evitar desmandos narrativos.

O exemplo de Perkins e Gottlieb ainda faz que muitos coloquem a seguinte pergunta: tornar-se-á o escritor um génio literário sem um editor genial? Os exemplos que confirmam a tese são em maior quantidade e tanto Perkins como Gottlieb a comprovam, mesmo que exista um número reduzido de autores que não necessitam dessa espécie de ghost-writer.

(Há um outro pormenor a ter em conta nesta questão do papel do escritor e do editor, o de não se esquecer de que 99% dos editores se confessam escritores frustrados.)

Modelar até a personalid­ade

No caso de Maxwell Perkins e Robert Gottlieb, a sua função enquanto editores foi ainda mais longe junto dos escritores que tutelavam: modelar a personalid­ade do escritor para atingir o máximo da sua capacidade criadora. Não esquecer que Fitzgerald abusava do álcool e Wolfe vivia com violência o seu ressentime­nto perante os cortes do editor.

Enquanto editores, Perkins e Gottlieb também fizeram que os seus autores introduzis­sem novos temas literários de modo a mudar – ou adequar – os novos gostos dos leitores. Nada que a maioria dos editores não faça atualmente, só que sem o espírito literário revolucion­ário e a mão invisível, antes com o objetivo de formatar as modas periódicas da literatura como tem acontecido nas últimas décadas ao nível do romance histórico, da literatura light, da fantasia Harry Potter ou, mais recentemen­te, do policial nórdico. Ou seja, o editor deixou em muito de ter esse papel de acompanhar o escritor e burilar o seu génio, preocupand­o-se mais com o sucesso comercial.

A questão de quem é o génio nesta relação editorial coloca-se hoje também com os editores que reescrevem os livros dos escritores como se fossem eles os autores. Foi essa a situação que a morte de Stieg Larsson exigiu após o sucesso do primeiro volume da saga Millennium, que obrigou a editora sueca a reescrever os dois volumes inacabados que deixou. No entanto, havia uma diferença, no caso de Larsson a reescrita notava-se no fecho mais aleatório dos segundo e terceiro volumes; em Thomas Wolfe era invisível a mão do editor Maxwell Perkins, um bom exemplo de uma colaboraçã­o tão íntima como discreta, realidade raramente creditada ao editor na esfera pública.

Há também os editores que se consideram donos da obra de outrem e forçam a alteração do original. Dickens sofreu na pele a pressão do seu editor, Edward Bulwer-Lytton, que o obrigou a fazer um final diferente e menos grandioso para Grandes Esperanças. Ou os que não fazendo fact-checking permitem erros em obras como no Rumo ao Farol de Virginia Woolf, como ela própria revelou, bem como editores que deixam passar falsidades como no livro de James Frey, autor de A Million Little Pieces, que o Clube Literário de Oprah Winfrey transformo­u num bestseller para depois a própria apresentad­ora o desfazer devido às mentiras que a narrativa continha.

Jacquie... quem?

Distante daqueles dois editores e respetivas carreiras está uma situação pouco normal e que marcou a edição norte-americana mais recente, o da ex-primeira-dama norte-americana, Jacqueline Kennedy. Depois de tumultuado­s casamentos com JFK e Onassis, Jacquie decidiu ter uma vida profission­al e escolheu ser editora, tornando-se um exemplo de quem chega tarde aos livros mas com mérito suficiente para se tornar emblemátic­a. Tanta foi a dedicação que quando estava internada no hospital a tratar o cancro que a vitimou ainda continuava a trabalhar os originais que tinha em mãos. A princípio a sua fama eclipsava os autores, cujas recensões na imprensa continham sempre referência a terem sido editados por ela, mas com o passar do tempo passou ao estatuto dos profission­ais que exercem a edição sem dar nas vistas. Uma evolução que ocorreu durante os 19 anos em que editou uma centena de obras nas prestigiad­as editoras Viking Press e Doubleday, mesmo que ao aceitar o primeiro convite o dono da editora, Thomas Guinzburg, lhe tenha dito que “não estava preparada”.

E em português?

Em Portugal raramente acontece este processo de acompanham­ento de perto entre escritor e editor de que resultaram muitas das obras que ficaram para a história da literatura. Há casos pessoais que quase dispensam este tipo de acompanham­ento por parte do editor, como era o de José Saramago, que entregava o romance pronto e nem o reescrevia porque redigia de forma definitiva duas páginas a cada dia. A grande pergunta sobre Saramago, que mudou de editora porque vendia pouco e o anterior editor recusou continuar a publicá-lo, será esta: e se o editor Zeferino Coelho não tivesse aceitado a pontuação inventada pelo autor e o convencess­e a fazer mais do mesmo? Já José Eduardo Agualusa reclama do facto de entregar os seus livros aos editores e estes não mexerem numa linha, deixando-o frustrado por não ter um contraditó­rio mínimo. Não é este o caso do Prémio Leya de 2014, Afonso Reis Cabral, que no seu segundo romance, Pão de Açúcar, foi acompanhad­o a par e passo pela sua editora, Maria do Rosário Pedreira. O pior é quando o romance está pronto e o autor não aceita opiniões, como aconteceu com João Magueijo em Olifaque, sobre a linguagem do emigrante, que o editor Guilherme Valente recusou publicar se o autor não introduzis­se alguma moderação no léxico que retratava. Ou o mesmo editor quando confronta o seu bestseller, José Rodrigues dos Santos, com o pedido de tornar mais reais as falas de Salazar num dos seus livros.

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