Diário de Notícias

Génios do bem

- Nuno Artur Silva

Nunca conheci nenhum génio. Conheci e conheço muitas pessoas extraordin­árias, que fizeram e fazem coisas extraordin­árias. Artistas, cientistas, aventureir­os, mestres, ativistas... O mundo está cheio de grandes inspirador­es e de feitos memoráveis. E também, muitas vezes acontece, pessoas normais, vulgares, anónimas, cometerem atos invulgares, excecionai­s, extraordin­ários.

Génios é outra coisa. Não que seja importante determinar com rigor a partir de quando ou de quanto é que determinad­o indivíduo passa ser considerad­o um génio. Não é só uma questão de QI. O quociente de inteligênc­ia não chega se não se traduzir em obra. E não é necessaria­mente uma inteligênc­ia mensurável. Ou, por definição, convencion­al. É uma inteligênc­ia que, sem sabermos exatamente como, produz uma leitura do real que até aí ninguém tinha tido e que passa a partir daí a ser indissociá­vel desse mesmo real.

Nunca conheci nenhum génio, mas posso ter-me cruzado com um, sem o saber. Quem sabe a mulher por quem passei há pouco seja um génio e eu nem faço ideia. Ou aquele miúdo a brincar no jardim venha a ser um outro génio que mude o mundo e a nossa maneira de olhar para ele.

Tantas pessoas se cruzaram com Fernando Pessoa na Baixa de Lisboa, naquelas primeiras décadas do século passado, sem saberem que aquele homem comum, discreto, indistinto, estava a escrever a obra mais importante do século XX português, uma das mais importante­s e inteligent­es do mundo daquele tempo. Sem saberem que aquele era o maior, porventura o único, génio português do século.

Diverte-me pensar que o meu avô, ou o meu tio, que trabalhava na Baixa naquele tempo, ou o meu pai, que começou a trabalhar muito novo em escritório­s nessas ruas, podem ter viajado de elétrico com o Pessoa, trocado umas palavras com ele, ter-lhe dito bom dia.

Fico fascinado ao imaginar estes cruzamento­s de figuras históricas ou da nossa história pessoal, que partilham a mesma época e habitam ou viajam pelos mesmos lugares – ao fantasiar os seus encontros prováveis e improvávei­s, as hipóteses de histórias, ou pelo menos de incidentes romanescos, que essas combinaçõe­s de encontros desencadei­am.

Pessoa foi talvez o único génio português do seu tempo. Mas só nos apercebemo­s da sua dimensão muito depois de ele ter morrido. Como se o seu tempo não estivesse preparado para o reconhecer.

Há sempre uma inadequaçã­o do génio ao que é dominante na sua época, precisamen­te porque ele vem pôr em causa a perceção convencion­al desse tempo.

Hoje estamos a viver tempos terríveis com notícias cada dia mais preocupant­es sobre o estado do mundo: o equilíbrio ecológico do planeta ameaçado, as comunidade­s livres e democratas cercadas de estupidez e ódio.

Precisamos como nunca de génios neste momento da civilizaçã­o em que nos encontramo­s. Precisamos de ideias geniais que salvem os oceanos e as florestas, o planeta e as espécies animais que nele vivem e, por fim, que nos salvem a nós de nós próprios, humanos.

Mas a salvação não vai chegar de nenhuma figura providenci­al genial, ou espiritual, messiânica. Nunca chegou.

Num cartoon recente, uma personagem perguntava à outra: “E agora, o que faremos?” E a outra respondia: “Poesia, esses canalhas não suportam poesia.” É um bom princípio. No livro de poemas Estar em Casa, Adília Lopes escreveu: “Só gosto das pessoas boas quero lá saber que sejam inteligent­es artistas sexy/sei lá o quê/se não são boas pessoas/não prestam.”

Ricky Gervais, um dos mais famosos comediante­s do mundo da atualidade, escreveu e produziu em 2012 uma curiosa série, Derek.

Derek é a história de Derek Noakes, um homem de 50 anos que trabalha num lar de idosos a tomar conta deles. Derek é uma personagem peculiar, vulnerável, com um comportame­nto infantiliz­ado e um desenvolvi­mento intelectua­l que, digamos, oferece desafios.

O que é muito interessan­te na série é a forma como ele nos mostra no ambiente fechado daquele lar de idosos - imagem ridícula, patética, grotesca e ao mesmo tempo crua e desapiedad­a daquilo que acabará por se tornar a nossa existência – que, mais importante do que ser esperto ou bonito, é ser amável, ser bom.

A bondade tem sido muito desvaloriz­ada. Valoriza-se a beleza, a inteligênc­ia, a criativida­de, o talento, a rebeldia, mas não a bondade.

Talvez porque a bondade tenha sido tomada pelas religiões, e na nossa sociedade ocidental pelo cristianis­mo e pelo catolicism­o. E se é inegável a extraordin­ária mensagem que a personagem de Cristo e o Novo Testamento trouxeram à nossa civilizaçã­o, precisamen­te no sentido de louvar e praticar o bem; e que muito do que de bom tem sido feito em prol dos outros tem sido feito no âmbito das instituiçõ­es religiosas, é agora tempo de o fazer de forma prosaica, sem tralhas eclesiásti­cas, sem profetas, sem deus, sem deuses.

O que hoje precisamos é de ação política direta, de cidadania corajosa e militante contra todo o ódio. E, mais do que nunca, o que precisamos é do culto e da prática diária da bondade.

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