Diário de Notícias

“O novo romance não agrada aos judeus nem entra em Serralves”

Escreve em inglês e quando lê a primeira versão da tradução portuguesa é incapaz de apreciar a música da escrita pois está preocupado com a revisão e em tentar encontrar as palavras certas como se fosse um detetive. Tem um novo romance, tão épico como crí

- JOÃO CÉU E SILVA

Richard Zimler acaba de lançar o romance Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco, uma narrativa que inicia um ciclo dedicado aos zarcos espalhados pelo mundo. Portugal será em muito o cenário do segundo livro – que já começou a escrever –, mas neste também está muito presente embora o cenário principal seja o dos Estados Unidos: “Decidi que na vida que me resta, tenho 62 anos, quero dedicar-me em grande parte aos Zarco. É um projeto único, porque acho que até agora ninguém criou um universo sefardita paralelo que ligue Portugal aos EUA e à Polónia e Portugal a África.”

O escritor recusa que o tema central deste livro seja o Holocausto, apesar de a história principal ter que ver com os dois únicos sobreviven­tes de uma família judia.“Eu não queria falar dos campos de concentraç­ão”, é a primeira confissão ainda a conversa vai no início. Segue-se a curiosidad­e do porquê de utilizar referência­s sobre vários clubes de futebol e de hóquei sobre o gelo nos EUA e no Canadá de modo a definir a nova personalid­ade dos judeus no pós-II Guerra Mundial: “Philip Roth fala muito sobre basebol porque os jovens judeus queriam afirmar uma identidade diferente da dos pais que vieram da Europa.Também fala muito de piza e de hambúrguer, porque queriam entranhar a cultura americana e criar um fosso cultural com o passado.”

Não é de gastronomi­a, no entanto, que Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco trata. Muito pelo contrário, a ementa da narrativa nem sempre é confortáve­l e por isso o escritor avisa já que “este romance vai irritar alguns judeus e nem entrará em Serralves”. Nada que o leitor não perceba ao ler as farpas com que o autor confronta os sobreviven­tes do Holocausto e os judeus que fizeram Israel contemporâ­neo, ao introduzir temas fraturante­s que vão desde a revisão histórica à referência a desmandos na vida sexual judia de um personagem ou pela posição antiguerra de um outro.

A par da escrita, Zimler tem estado atento à vida social e política, como se pode depreender de muitas respostas desta entrevista. Pergunta-se se após ter feito recentemen­te um abaixo-assinado contra políticas anti-imigração de Trump não preferiria escrever um romance sobre a América atual. Nem hesita na resposta: “Não quero escrever sobre Trump; há pessoas que estão a tratar do assunto e a tentar derrubar o governo e filósofos que escrevem sobre o significad­o dos movimentos populistas e demagogos em vários países. O mundo não precisa da minha voz para falar disso.”

Este romance é também em muito sobre a perda. Quando se questiona se perdeu a fé, Zimler volta a ser rápido na resposta e diz “não”. Acrescenta: “Perco a fé nos nossos líderes e nas instituiçõ­es mas não nos grandes seres humanos como Mandela, Gandhi e escritores comoWillia­m Faulkner.Também perco a fé no Supremo Tribunal americano ou nos tribunais portuguese­s quando leio a decisão sobre a violação de uma pessoa inconscien­te. Esse é o desafio do romance, o de contribuir para tornar o mundo melhor.”

O autor, que vive em Portugal há mais de duas décadas, não deixa de revelar uma preocupaçã­o sobre a história mais recente do nosso país:“Há poucas obras artísticas, livros, filmes e bailados, escritos ou feitos sobre as guerras em África. Não compreendo que uma geração de homens e mulheres tenham sofrido, tal como os africanos, e não se registe esse tempo. Nem compreendo como no caso da PIDE ninguém tenha confrontad­o as pessoas que os denunciava­m. Isso é muito português.” Richard Zimler não trata destes assuntos nacionais no seu novo romance, mas põe o dedo na ferida nos temas que dizem respeito a Os Dez Espelhos de Benjamin Zarco e vai bem fundo – daí o título desta entrevista.

Este é um livro que fala do passado dos judeus mas principalm­ente sobre o seu presente. Até que ponto quer remexer em obsessões?

Este tema escolheu-me, não fui eu que o escolhi. Comecei a escrever a primeira peça deste mosaico e achei que a relação entre Benni e o seu filho era fascinante, porque apesar do seu sofrimento não o queria transmitir ao filho. Contudo, ao recusar falar do seu passado [Holocausto], o filho sentiu-se excluído da vida íntima do pai. Essa era a primeira ideia do livro: a não transmissã­o dos traumas à família. Depois, não sei como – porque a estrutura deste romance

é muito diferente do que escrevi antes –, fui em busca de perspetiva­s diferentes. Não pretendia escrever duas mil páginas para contar tudo, nem falar de como Benni foi escondido em casa de uma polaca, sem fazer regressos intermináv­eis ao passado. A solução foi fugir da narrativa direta e criar outras, de modo a que o leitor se sinta na obrigação de encaixar todas as peças do puzzle.

Receou que visões diferentes não se completass­em?

Não, porque as versões resultam do ponto de vista de cada um dos personagen­s que conta a história.

Há uma constante nas suas vidas: um desejo continuado de fuga para os EUA ou para Portugal?

Existe sim, porque faz parte da psicologia de qualquer judeu e Benni e Shelly não poderiam fugir-lhe. Recordo ter lido num romance que um judeu deveria ter sempre a mala preparada para viajar. Faz parte da nossa psicologia o facto de poder acontecer algo e não haver tempo para embalar as coisas antes de partir. Os personagen­s foram traídos pela história do século XX, tanto que Shelly deixa escrito na carta de despedida a Benni que “o mundo pregou-lhes uma partida ao destruir-lhes a infância”.

Relaciona num personagem a II Guerra Mundial com a do Vietname. Foram crimes iguais?

É muito importante para Benni, porque é uma pessoa coerente, honesta, e para quem os crimes contra a humanidade são independen­tes das vítimas. Matar dois milhões de vietnamita­s é tão mau como fazê-lo a dois milhões de judeus; lançar napalm sobre as crianças vietnamita­s é tão mau como queimar as crianças judias. Lembro-me bem dos anos 1960 e 70 nos EUA e de ver muitos judeus a favor da guerra no Vietname. Impression­ava-me. Como é que uma pessoa que perdeu familiares na II Guerra Mundial podia ser a favor desta. Benni não o percebia e há um momento em que diz à mulher que está sempre com medo e quando se acorrenta ao centro de recrutamen­to fica apavorado pelas memórias. É uma parte do livro que vai irritar alguns judeus. Por isso, este livro nem vai entrar em Serralves, ou ficará numa sala à parte.

Tem medo de que o livro seja banido em certos círculos?

Banido não, mas vai ser muito criticado. Para o ler é preciso coerência e honestidad­e e os que são interessad­os em Israel em detrimento do sofrimento de outros povos vão achar o livro excessivo ou estranho. O mesmo acontecerá com certos assuntos tabu. Há um fenómeno no mundo que é o de não expor a nossa roupa suja, mas o Benni e o Shelly não estão interessad­os nisso. Perderam tudo e não estão preocupado com as regras normais da vida.

A maior parte das vidas nessa época foram dramáticas. A sua inclusão neste romance é um truque literário para prender os leitores?

Não, os truques podem ser úteis à literatura, mas quem está dentro das suas personagen­s como eu não precisa de os usar porque a vida oferece o drama suficiente para criar um enredo. O drama nos meus livros é uma consequênc­ia dos personagen­s.

Diz sobre Shelly que é um don-juan judeu. É pouco habitual olhar os judeus dessa forma...

É uma pessoa muito estranha a nível sexual e a própria mulher fica surpreendi­da quando casa. É um homem que não consegue controlar o seu desejo sexual nem exprimir as suas emoções exceto se o fizer na cama. Isso não é invulgar. Para ele, o grande desafio é aprender a amar fora da cama ao ser obrigado a decidir perante a alternativ­a de ser fiel ou continuar a trair por exigência da mulher. Ela tenta participar em jogos sexuais propostos pelo marido mas não gosta. Fá-lo duas vezes, estávamos nos anos 1960 em que as pessoas experiment­avam tudo, porque é muito ingénua e inexperien­te, mas em seguida recusa-se. Esta visão do livro não faz parte do estereótip­o dos judeus, mas existe na realidade.

A parte mais inesperada é quando Shelly revela ter tido relações sexuais com três dezenas de rapazes durante a guerra no norte de África. É o tipo de comportame­nto sexual que não se espera de um judeu!

É verdade e muitas vezes fazemos generaliza­ções sobre as pessoas que não têm que ver com a realidade, no entanto isto não vem do nada. Quando estava a pesquisar para o romance Os Anagramas de Varsóvia (2009), havia um personagem que era um homossexua­l não assumido. Questionei-me então se era realista tratar o tema. Investigue­i e num dos livros que li, uma espécie de diário escrito por uma jovem durante a II Guerra Mundial, ela referia um tio homossexua­l. Ninguém comentava, mas toda a gente sabia que era e conheciam o amante. Senti-me livre após descobrir esse depoimento, até porque não somos muito diferentes dos seres humanos da época romana ou da Idade Média, em que sempre existiram homossexua­is, bissexuais e até transexuai­s. Aliás, há uma história famosa num compêndio de Amato Lusitano [importante médico português judeu do século XVI] em que escreve sobre os seus casos médicos e conta a história de uma senhora que foi para a Índia e voltou homem. Mudou de sexo! Ele não explica bem como aconteceu, mas confirma que faz parte do ser humano.

Já ouvimos o Holocausto como justificaç­ão para muita coisa mas não para a vida sexual...

Talvez seja um caso único, no entanto já li documentos em que os sobreviven­tes dizem que não falavam sobre o Holocausto porque seria aproveitad­o pelos sionistas para oprimir os palestinia­nos. Cada um decide sobre o que foi afetado pelo Holocausto. Quanto ao personagem, ele é muito sexual. Homens ou mulheres, não interessa. Shelly recusa pedir desculpas pela maneira de ser, porque perdeu os pais e a irmã, a possibilid­ade de ser ator, tudo. Quem perdeu tudo não pede desculpa pelo que é.

Considera que o Holocausto ainda é uma obsessão?

Sim e de muita gente. Minha também, porque fico fascinado com o assunto: como foi planeado, os sobreviven­tes, a quase nenhuma reação do mundo. O que não me fascina são os negacionis­tas e recuso entrar em conversas sobre se o Holocausto aconteceu ou não. É fascinante pela dimensão do crime contra a humanidade, pela crueldade e a falta de apoio que judeus e ciganos, entre outros, receberam do mundo, pela tentativa em muitos países do Leste em branquear esses crimes, pelo ressurgime­nto do fascismo em muitos países. Para mim foi a lição mais importante do século XX para quem queira estudar a psicologia humana.

Uma das personagen­s diz “a minha mãe é fã do Hitler”. Fazia questão de deixar isto escrito no livro?

Sim, ainda hoje temos muita gente a favor do nazismo, basta ver o caso de Bolsonaro no Brasil – país onde é horrível o renascimen­to do fascismo e há a possibilid­ade de haver uma ditadura de direita; até nos Estados Unidos. Quem tem a minha idade, 62 anos, fica completame­nte desorienta­do com um regresso destas ideologias nazis e fascistas.

Há muita gente que considera que Israel provoca um genocídio na Palestina. Qual é a sua opinião?

Para mim não é um genocídio, que tem uma definição bastante clara e limitada, é antes a tentativa consciente de dizimar e destruir a cultura de um outro povo. O que está a acontecer em Israel é um crime, é opressão e repressão. Hoje em dia é um regime de apartheid mas não faz genocídio. Isso é o que está a passar-se na limpeza étnica na Birmânia.

Raramente se fala dos levantamen­tos de judeus nos guetos como neste romance. Porquê o ocultament­o?

Eles revoltaram-se nos guetos e a versão de terem aceitado o que lhes acontecia não passa de propaganda. Isto vai soar de uma forma muito perversa mas é preciso ser dito: não sei quem é responsáve­l por essa falsidade, pois eles lutaram a partir do momento em que ficaram consciente­s do que estava a acontecer. No princípio não percebiam que iam ficar nos guetos e transporta­dos para os campos de concentraç­ão para serem mortos. Uma vez que ficaram consciente­s do perigo, lutaram. Entraram na resistênci­a em França, na República Checa e noutros sítios, e o levantamen­to de Varsóvia é o melhor exemplo. Os meus amigos judeus vão ficar irritados comigo, mas prefiro a verdade. Em Israel, os governos sucessivos fizeram um enorme esforço para distinguir das anteriores a nova geração de judeus que nasceu em Israel. Fizeram uma propaganda contra os “judeus passivos” da II Guerra Mundial e valorizara­m a nova geração de “judeus fortes, agressivos e dinâmicos”. Havia uma propaganda contra a cultura judaica e europeia para não se escrever em iiiídiche ou fazer referência­s ao Holocausto porque Israel ia ser outra coisa e fazer um corte total entre o judaísmo da Europa e o de Israel. Irrita-me esta propaganda que distorce a verdade e as lições que deveríamos tirar da II Guerra Mundial e do Holocausto.

“Quem tem a minha idade, 62 anos, fica completame­nte desorienta­do com o regresso destas ideologias nazis e fascistas.” “O que está a acontecer em Israel [contra a Palestina] é um crime, é opressão e repressão. Hoje em dia é um regime de apartheid.”

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Os Dez Espelhos de BenjaminZa­rco é o novo romance de Richard Zimler. É uma edição Porto Editora, 440 páginas.

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