Uma escola de Setúbal que usa a lei para não ser igual às outras
Numa altura em que se debate a promoção do sucesso através da flexibilidade curricular, e de abordagens fora da caixa, uma escola em Setúbal está a ajudar um bairro inteiro a vencer o estigma do insucesso.
Atravessa-se um simples portão metálico e a melancolia do bairro social da Bela Vista, em Setúbal, dá lugar a um pátio fervilhante de crianças e adolescentes, enfeitado com estátuas de borboletas feitas pelos alunos de Artes a partir da chapa de velhos automóveis. No interior da escola dos 2.º, 3.º ciclo e secundário Ordem de Santiago não há parede onde não estejam penduradas outras obras de arte. Nem painel onde não se vejam cartazes anunciando uma miríade de clubes das diversas áreas disciplinares, eventos culturais e desportivos.
Um professor acaba de desenhar a cara estilizada de Fernando Pessoa, a caneta de feltro, numa das paredes de vidro da biblioteca. “É para promover a iniciativa de poesia”, explica. “Todos os dias acontece alguma coisa diferente. Isto não é uma escola”, sentencia o diretor, Pedro Florêncio, “é um centro cultural onde se dá aulas”.
A flexibilidade curricular implementada pelo Ministério da Educação, que permite gerir livremente 25% da carga curricular, foi para esta escola sobretudo “um instrumento que veio dar suporte e enquadramento” à aplicação de uma filosofia que já existia, e que passa por dar mundo – ou cidadania, para usar o termo educativo – a quem dificilmente o teria por outras vias. Avaliação com “carácter formativo” Não se trata de prescindir de transmitir conteúdos dos programas, esclarece o diretor, antes fazê-lo através de uma linguagem adaptada aos estudantes. Com a qual estes se reconheçam. “Quando digo que é um centro cultural, é porque muitas vezes olhamos para a escola e não a concebemos como um centro educativo, mas como um espaço onde os alunos estão bem e aprendem. Temos muitas atividades, convidamos muitas pessoas para cá virem falar, muitas vezes os alunos passam mais tempo fora da sala de aula do que lá dentro”, explica. “Diariamente, há turmas a ter aulas de Matemática, por exemplo, num auditório de pedra que temos fora da escola, com aprendizagens num contexto diferente, em que os conteúdos são aplicados a coisas que eles conhecem.” A avaliação, defende, “tem um carácter formativo”, e é esse que a escola privilegia também na altura de classificar, preferindo a avaliação contínua e os trabalhos em grupo, por exemplo, aos testes escritos. Se tentassem replicar métodos mais tradicionais, garante, “não teríamos hipóteses”.
No 1.º ciclo, Vera Macedo, uma professora, dinamizou um projeto chamado Entre Serras, feito em parceria com escolas de Monchique, em que os alunos
“Os alunos têm de gostar de cá estar. Sem isso não conseguimos nada.”
PEDRO FLORÊNCIO Diretor da Escola Ordem de Santiago, em Setúbal “Vê-los a terminar este caminho é deslumbrante para quem os viu crescer desta maneira.”
ANA ESTEVÃES
Professora
apresentaram a serra da Arrábida, ficando a saber mais sobre a serra algarvia. Ana Paula Gonçalves, coordenadora do 1.º ciclo, conta que, ao verem imagens da Arrábida, alguns estudantes da Bela Vista perguntaram “em que país ficava aquele sítio tão bonito”. Nunca lá tinham ido. “Nem sabiam que existia.” A partir daquele exemplo, os alunos não só ficaram a saber mais sobre a própria terra como foram convocados a adquirir conhecimentos, de História, Matemática, Geografia, que de outra forma dificilmente lhes despertariam interesse. Encontrar respostas num palco Enquanto assistimos a um exercício de movimento poético livre de uma turma do 11.º ano da coordenadora do curso profissional de Artes do Palco, Ana Estevães, num dos átrios interiores da escola, reparamos numa adolescente, com uns 15 anos, que também observa a apresentação. À sua frente tem um carrinho, com o seu bebé. É uma súbita chamada à realidade do bairro.
Todos os anos há “dois ou três casos” destes no agrupamento. E a forma que a escola encontrou de confrontar a situação foi conceber um conjunto de sketches, para os alunos de Teatro apresentarem aos colegas, onde eram feitas afirmações assumidamente ridículas como: “Da primeira vez nunca se engravida.” Depois, a plateia foi desafiada a comentar aquilo a que se tinha assistido. E, como seria de prever, acabou a confrontar-se com a falta de conhecimento e a desejar saber mais.
Ana Estevães orgulha-se de poder dizer que praticamente todos os que terminaram o curso de Artes do Espetáculo “estão a trabalhar em companhias de teatro”. Mas orgulha-se mais do percurso que fizeram. Antes, conta, eram “alunos com muito baixa autoestima, falta de assiduidade, comportamentos muito irregulares, desajustados. Vê-los a terminar este caminho de três anos, a duração do curso, é deslumbrante para quem os viu crescer desta maneira. O teatro é também crescimento interior”. “Escolas que são mais dos brancos” Sandro, aluno do 11.º ano, será um deles. Emigrou para Londres há dois anos, passou por situações difíceis em termos pessoais, mas, assim que voltou ao país, pediu à professora para regressar ao curso. Conseguiu. “Não voltei só para acabar o 12.º ano. Voltei porque gosto do curso, gosto da escola, gosto da professora. Eu ao início tinha muitos problemas de dicção, de voz. A professora Ana ajudou-me. Mas não só. No Alemão também senti muito apoio das minhas professoras. Aqui estou satisfeito”, resume.
“Aqui temos diferentes etnias. Ciganos, a etnia africana e os brancos. Há outras escolas que são mais dos brancos. Aqui envolvemo-nos todos e isso é muito bom”, diz Micaela, da mesma turma. “Os professores ajudam-nos muito. Há outras escolas, em que andei, onde os professores são muito rigorosos. Aqui, como sabem que alguns têm dificuldades, e também temos alunos com necessidades especiais nesta escola, eles ajudam-nos muito.”
O desporto escolar é outro dos motores da escola. Em cima da secretária, Pedro Florêncio tem pousado o troféu de mérito de Desporto Escolar dado ao agrupamento, pelo terceiro consecutivo. É mais uma distinção. E já se vão habituando. Mas convém ter sempre presente o ponto de partida. Quando chegou à escola, em 2009, nas reuniões com diretores de outros agrupamentos, “ninguém” lhe perguntava pelos resultados escolares. A escola estava sempre “entre as três piores do país” nos rankings. Já não está.