Diário de Notícias

Populismo faz soar alarmes até na Feira do Livro de Frankfurt

- PATRÍCIA VIEGAS, em Frankfurt “

Na maior feira do livro do mundo, que termina neste domingo, várias vozes alertaram para a violação dos direito humanos e para os riscos da vaga populista e nacionalis­ta em curso. Na Alemanha, na Europa e no mundo em geral. AfD, partido de extrema-direita alemão, deverá pôr em causa a maioria absoluta da CSU nas eleições deste domingo na Baviera. Pela primeira vez no pós-Segunda Guerra Mundial. E, em duas semanas, ter importante­s ganhos nas eleições no estado do Hesse.

Precisamos de falar.” Este é um dos slogans da Feira do Livro de Frankfurt. E quando alguém nos diz que precisamos de falar é porque o assunto é sério e precisamos mesmo falar. Thorsten Dönges, por exemplo, fala sobre livros de autores alemães ou que escrevem em alemão. Trá-los debaixo do braço, uns oito ou nove, espalha-os por cima da mesa e começa a explicação.

Um dos que apresentam com maior eloquência é Der Reisende e o autor é Ulrich Alexander Boschwitz. Nasceu em Berlim em 1915 e morreu em 1942. “Ele escreve sobre Berlim de novembro de 1938, quando os na- zis começaram o verdadeiro progrom, começaram a ir a casa dos judeus, a espancá-los. É um romance. É sobre um judeu que tenta fugir, apanha vários comboios mas não consegue. E depois desaparece”, explica o crítico literário a um grupo de jornalista­s estrangeir­os numa das salas da Messe Frankfurt.

“O que é mais curioso sobre este livro é que foi publicado no Reino Unido em 1939 e em França em 1945 e só agora, em 2018, é que foi publicado na Alemanha. Mesmo com a intervençã­o do Nobel da Literatura alemão as editoras diziam que o livro não tinha interesse para os alemães. Ora o que ele descreve no livro é o que está a acontecer agora com as pessoas nas nossas fronteiras. A situação que ele descreve é tão moderna e ao mesmo tempo tão arcaica. Mas

A AfD continua a subir, mesmo em tempos de prosperida­de económica naquela que é a maior economia da UE.

não importa o quão moderna a sociedade é, nunca estamos seguros, estes modelos arcaicos podem voltar”, sublinha o especialis­ta do centro Literarisc­hes Colloquium Berlim.

Visivelmen­te apreensivo com a situação do seu país, o crítico literário alemão afirma: “Há três anos, se me perguntass­em, diria para não se preocupare­m com a Alemanha. Mas hoje a verdade é que já não sei o que dizer. Muita gente faz comparaçõe­s com os anos 1920-1930. Em termos do tom do nacionalis­mo. Isto tem que ver, acho, com a fragilidad­e do Estado nacional.”

Thorsten Dönges não é único a manifestar preocupaçã­o. “A questão é que tipo de narrativa queremos deixar aos nossos filhos? Queremos falar de “turismo de asilo” como fez o ministro da Baviera? Ou queremos continuar

uma história de respeito pela diversidad­e? E de projetos de integração que existem por todo o país e revelam uma sociedade aberta?”, questionou Heinrich Riethmülle­r, presidente da Associação de Editores e Livreiros Alemães, na cerimónia de abertura da 70.ª edição da Feira do Livro de Frankfurt (desde que foi retomada depois do final da Segunda Guerra Mundial, em 1949).

Riethmülle­r referia-se a Markus Söder, ministro-presidente do estado da Baviera, o homem a quem chamam o Donald Trump da Alemanha e está no cargo desde março, depois de o líder da CSU (congénere bávara da CDU de Angela Merkel), Horst Seehofer, ter integrado o governo federal da Grande Coligação como ministro do Interior. Más notícias na Baviera A Baviera vai a votos neste domingo e, segundo as sondagens, as notícias não são as melhores. Nem para Söder nem para Seehofer. E potencialm­ente nem para Merkel. A CSU poderá perder a maioria absoluta pela primeira vez desde o pós-guerra. E tudo por causa da ascensão do partido de extrema-direita Alternativ­a para a Alemanha (AfD).

As sondagens apontam que esta formação que nas eleições federais do ano passado ficou em terceiro lugar, tendo conseguido entrar no Bundestag, terá entre 10% e 14% dos votos. A CSU poderá descer dos 48%, que teve há cinco anos, para 32% a 34% dos votos dos eleitores bávaros. O SPD pode cair de 21% para 12% e osVerdes sobem dos 9%, que conseguira­m em 2013, para 19%.

Estes dados revelam que toda a radicaliza­ção do discurso e de posições de Seehofer teve um efeito boomerang contra a CSU. Desde desafiar Merkel com o não cumpriment­o da sua política para os refugiados. Desde ameaçar a chanceler democrata-cristã com a demissão se ela não conseguiss­e que os seus aliados europeus aceitassem refugiados que entraram na Alemanha via Áustria. Desde promover o ex-chefe das secretas que Merkel demitiu, pressionad­a pelo outro parceiro de coligação, o SPD, depois de serem conhecidas as suas ligações a grupos de extrema-direita no país.

A AfD, que já entrou nos parlamento­s de outros estados federados alemães, continua a subir, mesmo em tempos de prosperida­de económica naquela que é a maior economia da UE. Depois do teste da Baviera, que pode voltar a fazer tremer a Grande Coligação de Merkel, dentro de duas semanas, no dia 28, segue-se o teste do Hesse, estado a que pertence Frankfurt. Aí, dizem as sondagens, a AfD poderá conquistar 13% dos voos, osVerdes sobem de 5,2%, em 2013, para 18%, o SPD desce de 31% para 23% e a CDU cai de 37% para 29%.

O atual ministro-presidente do Hesse – e candidato à reeleição – é Volker Bouffier da CDU. Na sessão de abertura da Feira do Livro de Frankfurt lembrou como, depois da guerra, o certame ajudou a Alemanha, então destruída e excluída da cena internacio­nal, a voltar à civilizaçã­o. “Esta feira não é só um sítio de trocas comerciais. Não pode ser apenas isso. Esta feira deve ser um manifesto pela liberdade”, declarou o político do partido de Merkel, pedindo: “Tenhamos todos a coragem de confronto e de não virar o olhar para o outro lado.”.

“Não queremos antissemit­ismo, iliberalis­mo, não queremos racismo, xenofobia e intolerânc­ia em Frankfurt”, declarou, por seu lado, Peter Feldmann, presidente da Câmara de Frankfurt am Main, membro do SPD. “A Feira de Frankfurt é um lugar de liberdade e de respeito mútuo. Se alguém usar os nossos palcos para promover o contrário, iremos protestar de imediato”, avisou Jürgen Boos, CEO da Feira do Livro de Frankfurt.

O recado destinava-se a simpatizan­tes da extrema-direita, como a editora Jungre Freiheit. E a oradores como Björn Höcke, líder da AfD na Turíngia, que na sexta-feira esteve na feira para participar numa conversa sobre o seu novo livro Nie Zweimal in Denselben Fluß (não duas vezes no mesmo rio). A protegê-lo, dezenas de agentes da polícia, sob o olhar reprovador de muitos dos participan­tes.

O certame termina neste domingo. Contou com mais de sete mil expositore­s. Oriundos de 102 países.

À entrada da Messe Frankfurt, o eurodeputa­do e líder do partido satírico Die Partei, Martin Sonneborn, surgiu mascarado de Claus Schenk Graf von Stauffenbe­rg, o oficial do Exército alemão que tentou assassinar Hitler mas falhou, para protestar contra a presença de Höcke na feira. Por todo o Pavilhão 4, onde o dirigente do partido de extrema-direita falou, foram espalhados panfletos a explicar “porque está certo contradize­r Höcke”, financiado­s pelo Centro Educaciona­l de Anne Frank. Este está localizado no bairro de Dornbusch, Frankfurt am Main, onde a jovem vítima do Holocausto nasceu.

“I’m on the same page” é outro dos slogans da feira. Destina-se a assinalar quase sete décadas de certame e sete décadas da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Presente na feira, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, ex-ministro dos Negócios Estrangeir­os noutra Grande Coligação de Merkel, afirmou que para lidar com a ascensão de populismos e nacionalis­mos na Alemanha, na Europa e no mundo em geral esta declaração “é necessária [e serve] como base de intervençã­o”.

Adotada na ONU a 10 de dezembro de 1948, a declaração consiste em 30 artigos. “Na primeira feira de Frankfurt”, sublinhou no seu discurso o ministro-presidente do Hesse, “ninguém sonhava com a internet ou com o Twitter. Mas há uma coisa que permanece a mesma: A Declaração Universal dos Direitos Humanos”.

*A JORNALISTA VIAJOU A CONVITE DO GOETHE INSTITUT

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 ??  ?? Eurodeputa­do e líder do partido satírico Die Partei, Martin Sonneborn, surgiu mascarado de Claus Schenk Graf von Stauffenbe­rg, o oficial do Exército alemão que tentou assassinar Hitler mas falhou, para protestar contra a presença de Björn Höcke, líder da AfD na Turíngia, na Feira do Livro de Frankfurt.
Eurodeputa­do e líder do partido satírico Die Partei, Martin Sonneborn, surgiu mascarado de Claus Schenk Graf von Stauffenbe­rg, o oficial do Exército alemão que tentou assassinar Hitler mas falhou, para protestar contra a presença de Björn Höcke, líder da AfD na Turíngia, na Feira do Livro de Frankfurt.
 ??  ?? Joerg Meuthen, colíder da AfD, diante de um cartaz em que se lê “O islão não pertence à Baviera”.
Joerg Meuthen, colíder da AfD, diante de um cartaz em que se lê “O islão não pertence à Baviera”.
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