À esquerda, volver. Acabou-se o tempo das vacas que voam
Bloco encerra hoje a convenção que lança o ciclo eleitoral de 2019, no qual pode haver acordos máximos, mas não haverá mínimos.
Estávamos a 11 de outubro. No Parlamento, o PCP anuncia uma declaração nos Passos Perdidos da Assembleia da República. Para surpresa geral, o líder da bancada comunista desfia uma profusa lista de matérias já acertadas com o governo. A pouca distância dali, os bloquistas ficam não necessariamente surpresos, mas muito pouco agradados: com o BE tudo está ainda em aberto e a reunião final com António Costa está por realizar-se. Será feita no dia seguinte, sexta-feira. Começa às sete e meia da tarde, na residência oficial em São Bento, acaba já passava da uma da manhã, a poucas horas da reunião do Conselho de Ministros que aprovará o documento. São seis horas de uma reunião tensa com o primeiro-ministro a fechar a mais dura negociação do Orçamento desta legislatura entre o governo e os bloquistas.
É a partir deste ponto que o Bloco de Esquerda se lança agora ao ciclo eleitoral de 2019, com epicentro nas eleições legislativas de outubro. Reconhecendo – e reclamando para si – a herança da geringonça, mas na certeza de que 2019 lhe vai pôr um ponto final. O que vai sair das eleições legislativas do próximo ano pode ser mais (ir para o governo), pode ser menos (ficar na oposição parlamentar, com convergências pontuais em função dos temas), mas não será uma geringonça – acabou-se o tempo das vacas que voam.
“Esta fórmula é um momento único, que corresponde à relação de forças que existiu naquelas eleições e à conjuntura económica em que o país estava, que era de completa desesperança. E havia uma maioria com vontade de mudança, mesmo não tendo o PS ganho as eleições”, diz o dirigente Jorge Costa. “Esta conjuntura é repetível? Não me parece.”
A perspetiva atravessa o partido. “Ou há maioria absoluta e o PS volta ao costume – e eu nunca acreditei numa maioria absoluta do PS e e continuo a não acreditar –, ou não há maioria absoluta e haverá negociação. O importante é ver o que é que sai dessa negociação”, sublinha, por seu lado, Francisco Louçã, fundador e ex-coordenador do partido. Mas “não pode ser como em 2015” – “aí tratava-se de salvar os salários e as pensões e correr com a direita do poder. Não é esse o problema hoje”. Por isso, o futuro “tem de ser muito mais exigente” – “não pode ser como as negociações do Orçamento, que se fazem na sexta até às duas da manhã porque no sábado o governo vai aprová-lo. Não pode ser assim, tem de ser uma preparação muito mais profunda, muito mais trabalhada. E isso implica – se for viável – que haja um projeto conjunto”.
E pode haver? “Não há ninguém que esteja a correr para se meter no governo”, contrapõe Louçã. “A questão da coligação é uma forma de fugir aos verdadeiros problemas da política portuguesa, que são outros: o próximo governo vai ter os recursos, a capacidade, a vontade, a maioria para resolver os problemas da Saúde, ou da Segurança Social, ou do investimento? Não é saber se o ministro é do Bloco ou do PCP.”
Luís Fazenda, outro fundador do Bloco (oriundo da UDP, que ainda se mantém como tendência no BE, agora como Esquerda Alternativa), chama-lhe uma “experiência restrita”. “Valorizamos a política que tivemos até aqui e estamos satisfeitos com esta experiência, mas ela está muito longe daquilo que deve ser um governo de esquerda”,
“Não há ninguém que esteja a correr para se meter no governo. A questão da coligação é uma forma de fugir aos verdadeiros problemas.”
FRANCISCO LOUÇÃ
Fundador do BE
aponta. Também Pedro Soares, membro do secretariado do Bloco, sublinha que “esta solução tem na base um acordo mínimo que resulta das circunstâncias de 2015”, não replicáveis em 2019. O BE não quer ter um pé num governo só um bocadinho de esquerda. Com o PS na mira Não é difícil de prever e Catarina Martins já deu ontem o sinal , no discurso de abertura da XI Convenção, de que o BE apontará todas as baterias a uma maioria absoluta do PS. Até porque o resultado dos dois partidos é indissociável – os estudos sobre o comportamento eleitoral comprovam que há eleitorado volante entre socialistas e bloquistas, enquanto na CDU as transferências de voto são absolutamente residuais.
Para os bloquistas, é isto que explica em boa medida a atitude mais recente do PS e os braços-de-ferro que se sucederam nas negociações do Orçamento para 2019. “Tem havido a criação de uma crispação artificial do governo em relação ao Bloco. É uma estratégia. A interpretação é que o PS pensa que, se for muito cordial com o PCP, prejudica o PCP porque cria divisões internas. Se fosse cordial com o Bloco favoreceria que um eleitorado intermédio entre os dois partidos se aproximasse do BE, portanto, prefere ser agressivo. E foi agressivo sistematicamente”, analisa Louçã. Para o ex-líder bloquista, esta é uma estratégia “contraproducente”: “É muito arriscada, cria até uma ideia de alguma política cínica – fazer um acordo mas atacar o partido com o qual está a fazer o acordo, comportar-se como se tivesse maioria absoluta. Reforça muito a ideia de que há tiques de maioria absoluta no PS.”
Há outra questão que se levantará dos resultados das legislativas do próximo ano – e o PCP? Se de fora é muitas vezes apontada ao Bloco a vontade de ir sozinho para o governo com o PS, esta é uma teoria que não só os bloquistas recusam como torcem o nariz a um acordo que deixe de fora a bancada comunista. A explicação é simples: o BE não quer deixar o PCP a falar sozinho na oposição à esquerda. “Um partido não é um fóssil” Já lá vão 19 anos desde que o Bloco de Esquerda se sentou pela primeira vez na Assembleia da República. Ou melhor, não se sentou, ficou de pé, um gesto de protesto dos dois deputados eleitos (Francisco Louçã e Luís Fazenda) para reclamar assentos na primeira fila do Parlamento. O gesto, e outros que se lhe seguiram, colaram desde o início aos bloquistas uma imagem de irreverência, em muito herdeira do PSR, uma das tendências fundadoras do partido. Atingida a maioridade, a caminho dos 20 anos, o BE perdeu a irreverência dos primeiros tempos? Deixou de ser o partido que se dizia diferente dos outros para se assemelhar cada vez mais a um partido tradicional?
Luís Fazenda responde que um “partido não é um fóssil, é um organismo vivo”: “O Bloco continua a ser um partido-movimento, não tem nenhum tipo de centralismo. E está no mesmo ideário, na mesma rota política em que sempre esteve.” Louçã também vê como natural a evolução dos bloquistas: “Os partidos crescem e mudam. O BE fez uma coisa que raríssimos partidos fizeram – na esquerda europeia toda – que foi uma renovação de geração”, que o antigo coordenador não classifica por menos do que “brilhante”. “A irreverência maior não é pôr uma T-shirt. É a coragem que o João Semedo teve de trazer o debate sobre o SNS ou a morte assistida. Juntar pessoas, mostrar que havia movimento, que havia temas essenciais do respeito pelas pessoas. Isso cria uma cultura, que é muito mais profunda do que o espetáculo”, defende o antigo coordenador bloquista.
Nascido em 1999 da confluência do PSR, UDP e Política XXI, que se mantiveram como tendências após a formação do partido, o Bloco de Esquerda tem hoje uma configuração substancialmente diferente. O PSR e a UDP extinguiram-se como partidos políticos (a Política XXI era um movimento), e os militantes distribuem-se hoje por diferentes sensibilidades que se agrupam na Plataforma Unitária, que congrega boa parte das três forças fundadoras – mantendo-se apenas uma tendência, a Esquerda Alternativa (herdeira da UDP). Há também um conjunto de bloquistas (alguns ex-PSR) que se têm reunido em torno da moção R, e que agora migrou parcialmente para a moção M, que se apresentou a esta XI Convenção – um grupo de bloquistas mais críticos da geringonça, que recusam novos acordos com o PS e reclamam mais democracia interna no partido.
São agora a voz crítica mais audível num partido que em 2014 quase se fraturou, e que depois disso fez um toque a reunir que juntou todas as tendências sob a liderança incontestada de Catarina Martins.
“Estamos satisfeitos com a experiência, mas ela está muito longe do que deve ser um governo de esquerda.”
LUÍS FAZENDA
Fundador do BE