Diário de Notícias

Sim, temos de ser virgens ofendidas, cara deputada

- Catarina Carvalho

Temos mesmo de ser todos virgens ofendidas, sim. Pegando na expressão que a deputada do PSD Emília Cerqueira usou para acusar quem a acusara de ter assinado as presenças do secretário-geral do seu partido na Assembleia da República. Expressão infeliz, sobretudo pelo que não diz e dá a entender. Que o esgaçar das regras é comum. Toda a gente sabe, o conhece, e, pior, o desvaloriz­a.

É essa a faceta mais grave do caso que podia ser apenas ridículo. Porque sim, são caracterís­ticas virginais as que se exigem a quem lida com coisas comuns, privadas ou públicas. O pudor, o rigor, o respeito. E, aos políticos, temos o dever de julgá-los através desse crivo. Se não for assim, lá vem o jeitinho, o entorse da norma, o fechar de olhos. E é isso que é perigoso na metáfora de Emília Cerqueira.

Voltemos às virgens. Chamar a atenção para este caso não é ser snob ou ser picuinhas. É ter noção do mundo em que hoje vivemos, onde há sempre alguém à espreita de uma falha para pôr mais um pouco em causa a ordem das coisas, as instituiçõ­es democrátic­as, os políticos, as elites. Por esta altura já todos conhecemos bem a narrativa.

Chamar a atenção para esta falha – que, sim, vale apenas 138 euros – não é roçar o populismo. Quem alerta para o perigo dos populismos não está, como dizem os seus críticos, a querer fechar os olhos a práticas pouco corretas. Pelo contrário. O ponto de partida dessa defesa da democracia tem de ser, pelo contrário, e para usar mais uma metáfora politicame­nte famosa, expurgar a má moeda.

Num mundo perigoso, sobretudo para eles, tem de exigir-se mais aos políticos. Que não se desculpem por serem “do Alto Minho” e não terem ideia de que uma password abre uma presença na sessão. Que sejam serenos e assumam os erros sem se porem aos berros ou se desculpem com “sim, mas”. Que não usem o ataque aos jornalista­s e ao jornalismo como defesa de pedras no sapato – valham elas 138 euros ou milhões.

Por outro lado, exige-se também que uma Assembleia da República cumpra melhor o seu papel de farol institucio­nal. Que seja mais rigorosa nos bons comportame­ntos e mais inovadora nas boas práticas. Se este sistema é tão falível, porque não foi já escolhido outro? Aproveitan­do a ironia de este caso ter explodido na semana da Web Summit em Lisboa – na era da inteligênc­ia artificial, da cibersegur­ança, da biométrica, faz sentido as faltas serem marcadas com um login facilmente copiável? Faz sentido esconderem-se por detrás de uma impronunci­ável Comissão Eventual para o Reforço da Transparên­cia no Exercício de Funções Públicas?

Chegámos onde chegámos no caminho da diluição do respeito pelas instituiçõ­es que criámos para proteger a democracia, não foi por excesso de rigor. Foi por deixar andar. Por, tantas vezes, desconhece­rmos quem nos representa. Para usar bem a expressão que Emília Cerqueira usou mal, nenhum político é uma virgem ofendida nesta matéria. Esticaram a corda, pisaram o risco, transmitir­am perceções erradas. E de poucos sabemos o que pensam para o país, para o mundo.

Talvez por isso nos surpreenda­mos tanto com a performanc­e de Emília Cerqueira - sobretudo numa conferênci­a de imprensa que ficará para a história do Parlamento (ver caixa) -, que aqui, para voltar à figura de estilo, serve apenas de metáfora.

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