Mário Soares
Família trava ida para o Panteão
OPS vai recuar na intenção de transladar Mário Soares para o Panteão Nacional. Dois diplomas aguardam agendamento no Parlamento e assim ficarão, naquilo que constituirá objetivamente um veto de gaveta. A ideia já tinha merecido apoio do Presidente da República. E na sequência dela o PSD propôs o mesmo para Francisco Sá Carneiro, o que Marcelo Rebelo de Sousa também apoiou.
Um dos diplomas é um projeto de resolução que tem como primeiro subscritor o deputado socialista Júlio Miranda Calha e pelo qual se determina a “concessão de honras do Panteão Nacional ao Presidente Mário Soares”. A seguir à assinatura de Miranda Calha – um dos dois sobreviventes da Constituinte ainda em funções na Assembleia da República (o outro é Jerónimo de Sousa) – constam as de outros deputados do PS (Sérgio Sousa Pinto, Bacelar de Vasconcelos ou o próprio Carlos César, por exemplo), mas também do PSD, começando pela do atual líder da bancada, Fernando Negrão.
O outro articulado é um projeto de lei que permitiria concretizar esta transladação – a lei em vigor determina que só podem ser concedidas estas honras 20 anos após a morte da pessoa a homenagear. Foi um prazo colocado na lei na sequência da controvérsia em torno da transladação do futebolista Eusébio (morreu em janeiro de 2014 e foi para o Panteão em julho de 2015).
Porque não se podia mexer na lei apenas em função de Soares, a lei passaria a determinar, caso fosse aprovada, que todos os ex-Chefes do Estado poderiam automaticamente ser sepultados no Panteão dois anos passados sobre a sua morte. Uma iniciativa conjunta entre o PS e o PSD, mais uma vez com a assinatura de Miranda Calha à cabeça. Mas há um problema. A posição dos filhos do fundador do PS e ex-Presidente da República, João e Isabel Soares. Os dois são, a uma só voz, contra a atribuição no curto prazo de honras de Panteão ao pai. E João, deputado do PS, já o fez saber à direção do grupo parlamentar do partido, Carlos César.
Falando ao DN, João Soares começou por salientar, muito enfaticamente, estar “extremamente grato” a Miranda Calha, “sempre grande apoiante do meu pai e sempre seu amigo até ao fim”, pela iniciativa. “Como filho, é algo que me honra e por isso estou-lhe extremamente grato. E deixo também a minha gratidão aos partidos que assinaram a resolução [PS+PSD].”
No seu entender, porém, “fazer uma lei especial para Mário Soares e os ex-Presidentes seria absurdo”, tanto mais que “os casos [dos ex-PR] são diferentes”. “O tempo de ponderação é bom. Estamos a falar do Panteão e falar do Panteão é falar numa perspetiva da eternidade. Não há nenhuma lufa-lufa, nenhuma pressa. Pessoalmente, acho que a lei deve ser respeitada até porque 20 anos não são nada. Insisto: estamos a falar da eternidade, não estamos a falar de amanhã.”
“Para mim é muito importante que os meus pais estejam os dois juntos, como estiveram durante toda a vida.”
ISABEL SOARES
Filha de João Soares
Isabel Soares, também ao DN, “não podia estar mais de acordo” com o que diz o irmão. Mas acrescenta outro argumento, recordando que Mário Soares e a mulher, Maria de Jesus Barroso, estão sepultados lado a lado num jazigo de família no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa: “Para mim é muito importante que os meus pais estejam os dois juntos, como estiveram durante toda a vida. É algo que me deixa muito confortável.”
Quem também se opõe é José Manuel dos Santos. Assessor cultural de Soares durante todos os anos da Presidência (1986-1996), foi um dos principais organizadores do funeral de Estado do fundador do PS, enquanto representante oficial da família na comissão que organizou todo o cerimonial. Em sua opinião, “seria um erro grave e uma banalização dos símbolos do Estado determinar que uma pessoa poderia ir para o Panteão só porque foi Chefe de Estado”. E para essa “banalização” concorreria agora organizar nova cerimónia de Estado para a transladação, tão pouco tempo após a das exéquias fúnebres. Todos os cuidados são poucos porque “um dos sinais de degradação dos regimes é a degradação dos símbolos, a sua banalização”.
Portanto, “não tem nenhum sentido”. Honras automáticas de Panteão para ex-Chefes de Estado é algo “que não existe em nenhuma República, só nas monarquias, nos panteões reais. Em França, por exemplo, nem De Gaulle nem Mitterrand estão ainda no Panteão. E cá, o Estado Novo colocou no Panteão o marechal Óscar Carmona [PR entre 1926 e 1951] mas já não fez o mesmo com Craveiro Lopes [PR de 1951 a 1958].” Assim, a fazer alguma coisa antes do período de 20 anos determinado por lei, “seria no centenário do nascimento de Soares, 2024, ano em que também se comemoram os 50 anos do 25 de Abril”. “Neste momento não se percebe bem porquê.” Outras recusas O caso da recusa da família em avalizar honras de Panteão a curto prazo para Mário Soares está longe de ser inédito. Recentemente, a Sociedade Portuguesa de Autores propôs a transladação de Zeca Afonso (1929-1987), autor do principal hino do 25 de Abril, Grândola,Vila Morena. Seria, disse aquela organização em comunicado, a homenagem certa a quem “como mais ninguém soube cantar em nome dos valores da liberdade, da democracia, da cultura e da cidadania”. “Zeca Afonso é um símbolo que nunca poderá ser esquecido ou ignorado, embora nunca se tenha batido por atos de consagração e reconhecimento. Devem ser hoje as novas gerações a aplaudir e a louvar a obra do homem que deixou uma marca perene e profunda na vida cultural e cívica de Portugal”, lia-se ali.
A família de imediato expressou a sua discordância, em nota à TSF. “José Afonso rejeitou em vida as condecorações oficiais que lhe haviam sido propostas. Foi, a seu pedido, enterrado em campa rasa e sem cerimónias oficiais, em total coerência com a sua vida e pensamento. Por isso, apesar da meritória intenção que inspira a proposta, é a sua vontade que deve ser respeitada.” Zélia Afonso, viúva do cantor e compositor, manifestou-se surpreendida com a proposta, dizendo até não entender porque tinha surgido.
Outro caso de recusa familiar ocorreu por ocasião das celebrações dos 40 anos do 25 de Abril (2014). Nessa altura, Manuel Alegre defendeu publicamente que uma maneira de celebrar a data seria promover honras de Panteão para o capitão Salgueiro Maia (1944-1992), militar às mãos de quem se rendeu, a 25 de abril de 1974, o último chefe de governo do Estado Novo, Marcelo Caetano. A viúva do capitão de Abril, Natércia Maia, opôs-se, recordando a vontade expressa de Salgueiro Maia de ser enterrado – como foi – no cemitério da sua terra natal, Castelo de Vide. E a ideia morreu – apesar de também ter sido apoiada pela Associação 25 de Abril.
Pela lei comum (Código Civil), a vontade das famílias é intransponível. É a elas que pertence a tutela dos restos mortais. E isso mesmo que existam leis que determinem honras de Panteão automáticas – por exemplo para ex-Chefes de Estado. Como aquela que se perspetivava no Parlamento – e que agora ficará fechada numa gaveta.