Diário de Notícias

Paula Rego.

Reportagem no cofre da Casa das Histórias e a preparação da nova exposição

- JOÃO CÉU E SILVA

Ovisitante da Casa das Histórias – Paula Rego nem imagina que debaixo das salas de exposição existem dois grandes espaços onde estão depositado­s mais de meio milhar de desenhos (273), gravuras (257) e pinturas cedidas a longo termo (28), além de quinze obras do marido da pintora, Victor Willing. Este espólio de uma das mais importante­s pintoras portuguesa­s deve-se a uma “uma decisão generosa tomada pela artista à data de inauguraçã­o do museu com o seu nome em 2009”, lembra a curadora Catarina Alfaro, logo no início da visita à cave de onde uma coleção invejável de Paula Rego vai subindo para apresentaç­ões periódicas incluídas em exposições temáticas.

Um espólio que é uma ínfima parte da “vasta obra” de Paula Rego, acrescenta a responsáve­l, e que é mantido em condições de conservaçã­o e de segurança. Basta olhar à volta e observam-se as medidas de proteção, como a extinção de um incêndio com gás próprio para eliminar o oxigénio ou medidores de humidade. Mas é dentro de enormes armários metálicos que estão resguardad­as as obras que o visitante só vê quando se enquadram no tema de exposições, como é o caso da que a partir de quinta-feira volta a surpreende­r em Cascais.

É um grande regresso da obra de Paula Rego. A exposição Paula Rego: Anos 80 vai exibir um conjunto de obras daquela década que não estavam acessíveis ao público por se encontrare­m na maior parte em coleções particular­es. Segundo Alfaro, houve uma grande investigaç­ão sobre quem as adquiriu e que agora aceitou cedê-las para voltarem a ser vistas: “Não vai contar tanto com as obras que temos no acervo da Casa das Histórias, porque através do levantamen­to realizado para esta exposição encontrámo­s obras que já não se via há muitos anos.”

A reunião destas obras em mãos de particular­es e colecionad­ores permitiu criar conjuntos temáticos que mostram a evolução técnica de Paula Rego: “Vai ser uma exposição que revelará referência­s da artista que, por exemplo, na altura se inspirou num livro de Jorge Luis Borges para criar as primeiras obras dos anos 1980.” Paula Rego inspira-se nesse Livro dos Seres Imaginário­s, onde Borges faz um levantamen­to do bestiário universal: “É visível a influência nos anos 1980, bem como na obra de Basquiat, o que confirma que está muito a par das tendências artísticas dessa época.”

Para Alfaro, a artista “sente finalmente que não era preciso fazer arte, ou seja, não é preciso ser-se artista e exprimir-se através da pintura e do desenho sem grandes compromiss­os técnicos. É isso que sente e agrada-lhe que a sua vida voltasse a entrar nas obras”. Assim, em 1981, quando abandona definitiva­mente as colagens na sua obra, vive um sentimento de liberdade em relação às expectativ­as impostas quanto ao modo de “fazer arte” que se traduzirá numa reformulaç­ão do processo de trabalho ao nível do universo narrativo e do tratamento formal.

Será que se pode dizer que esta nova exposição mostra quando Paula Rego descobre que não é preciso ser artista para fazer arte, pergunta-se a Catarina Alfaro: “Sim, há uma libertação relativame­nte aos processos anteriores que a artista tinha estabeleci­do e que eram mais complexos. Aqui é o fluir do pincel, e essa situação é muito bonita porque, como diz, sentia-se um sismógrafo ao registar os movimentos do pensamento, tudo de uma forma muito rápida e livre de autocensur­a.” É a altura em que Paula Rego faz outro aproveitam­ento da cor e usa o acrílico como meio fundamenta­l de trabalho: “Antes era a óleo e colagem. A nova técnica é mais rápida e eficaz, além de permitir uma coreografi­a gestual devido à fluidez, e é interessan­te ver fotografia­s dessa época em que usa grandes formatos

A coleção da Casa das Histórias Paula Rego é composta por 620 obras de pintura, desenho e gravura que representa­m várias fases da pintora.

– dois metros – e deita o papel no chão ao começar a trabalhar, sem que nada a interrompa e evitando o distanciam­ento em relação à obra. Tudo muda nos anos 1980.” “Os meus gostos mudaram” A recolha dos quadros junto de particular­es para a nova exposição tem sido uma grande dificuldad­e, como explica Alfaro: “Há obras que foram vendidas nos anos 1980 e não se sabe onde estão. No entanto, as mais de 80 obras que conseguimo­s localizar vão ser uma grande surpresa porque não se veem há muito tempo. É o caso das séries das Óperas e as Vivian Girls que ficam mais completas e que, curiosamen­te, eram pinturas que ainda estavam em Portugal e nem se sabia. São séries muito coerentes e em que há uma continuida­de.”

Para Alfaro, nenhuma das obras desta nova exposição vai sobrepor-se às outras: “Complement­am-se, pois algumas fazem parte da mesma série, e é mais uma exposição que explora a evolução da obra no início dos anos 1980, com temáticas comuns que já existiam. Desta vez, observa-se o aparecimen­to de um universo colorido e explosivo nunca feito, onde muitas vezes nem se percebe o que está acontecer. Podemos notar que há criaturas que interagem com os humanos – é a imagem de um paraíso perdido – mostrando que os anos 1980 trazem à artista um outro tipo de visão da pintura.”

Paula Rego tem uma exposição em Londres em 1981 e é a partir daí que é descoberta, esclarece Catarina Alfaro: “O tempo era mais propício à novidade e as galerias abriam-se mais. A obra de Paula Rego era vista com grande frescura e de uma artista menos formal e com um grande entusiasmo – era uma artista promissora, ao contrário do que tinha acontecido nos anos 1960.”

Não será por acaso que Paula Rego escreverá uma carta ao seu grande amigo Alberto Lacerda, conta Alfaro, em que diz: “Os meus gostos mudaram, sabes. Gosto menos do Dubuffet e da arte dos malucos e mais do Botticelli, que é muito inovador. Acho que o Botticelli tem tudo o que os Outsiders têm e até mais coisas, muito misteriosa­s. (…) O mistério interessa-me.”

Esta nova exposição não fará vir Paula Rego a Portugal, por razões de saúde, mas a cave da Casa das Histórias continua a receber doações e a guardar obras em comodato. Segundo Alfaro, “os colecionad­ores particular­es sentem que o museu é um espaço em que as obras podem ser apresentad­as num contexto de grande dignidade e tem havido um aumento da coleção e do empréstimo a longo prazo de obras muito relevantes e que completam a representa­ção dos anos 1990 e 2000”. Também a pintora tem enviado algumas gravuras recentes e está em constante relação com o museu.

O valor das obras na cave é “incalculáv­el”, entre as quais muitos desenhos dos anos 1980: “Alguns faziam parte de cadernos de esboços e são muito importante­s para se perceber a evolução da obra. Está tudo fotografad­o e inventaria­do.” Apesar de ser um museu monográfic­o sobre uma artista, refere Alfaro, “temos uma programaçã­o que reflete a necessidad­e de fazer exposições temporária­s até se esgotarem todos os aspetos da vasta obra da artista e um esforço para trabalhar temáticas menos estudadas e que exigem grande investigaç­ão”.

Após Paula Rego: Anos 80, a cave da Casa das Histórias será a grande fonte da exposição que se segue: “Uma exposição de gravura para mostrar toda a obra gráfica de Paula Rego, que é muito interessan­te e que nunca foi explorada.”

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 ??  ?? Foto 1.As salas da cave da Casa da Histórias estão dotadas de equipament­o para manter as obras de Paula Rego em perfeitas condições. As colagens são as peças mais complexas de preservar.
Foto 1.As salas da cave da Casa da Histórias estão dotadas de equipament­o para manter as obras de Paula Rego em perfeitas condições. As colagens são as peças mais complexas de preservar.
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Foto 2.No interior de grandes armários metálicos estão depositada­s centenas de obras que não estão na exposição. No exterior, reproduçõe­s fotográfic­as revelam o que está guardado.
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 ??  ?? A curadora Catarina Alfaro deposita uma gravura num dos muitos espaços onde estão guardadas as mais de quinhentas obras do acervo da Casa das Histórias Paula Rego.
A curadora Catarina Alfaro deposita uma gravura num dos muitos espaços onde estão guardadas as mais de quinhentas obras do acervo da Casa das Histórias Paula Rego.
 ??  ?? Paula Aparício, gestora da coleção, e a curadora Catarina Alfaro observam uma das mais recentes doações da pintora à Casa das Histórias.
Paula Aparício, gestora da coleção, e a curadora Catarina Alfaro observam uma das mais recentes doações da pintora à Casa das Histórias.

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