De risco em risco
A animada coreografia dos debates na Câmara dos Comuns não esconde a ambiguidade do seu conteúdo, reforçando a desconfiança em Bruxelas para qualquer gesto de flexibilidade. No meio disto está a Irlanda e a paz na ilha. E um conjunto de indefinições na véspera das eleições europeias. Cada semana que passa traz menos clareza ao incrível processo do Brexit.
Odebate nos Comuns foi o espelho perfeito dos tempos políticos britânicos. Jeremy Corbyn, depois de derrotada a moção de censura apresentada há 15 dias, resolveu encabeçar uma emenda, novamente derrotada, que previa mais tempo para negociar uma relação com a UE estruturada numa união aduaneira. É difícil olhar para isto sem ter pena do estado a que chegou o Labour: autoderrotado, sem um fio condutor percetível, delapidando um imprescindível estatuto alternativo aos insucessos de Theresa May. Já a primeira-ministra conseguiu, à custa da reabertura da sensível questão irlandesa, forjar uma conjuntural frente conservadora que lhe dá outra legitimidade para regressar a Bruxelas com uma ou outra exigência. Qual? Ninguém sabe. Nem a emenda aprovada sobre o backstop era clara nem o governo conseguiu articular uma ideia sobre os mecanismos alternativos pelos quais se bateu. No limite, a único ponto que conseguiu foi reabrir a desproteção política e jurídica às Irlandas, tratando de forma instrumental, para benefício tático do partido conservador, uma matéria de enorme relevância política, constitucional e securitária.
Claro que o dramatismo da contagem decrescente do relógio do Brexit tende a favorecer a estratégia de May, dado que espalha alarmismo económico e social aos países expostos ao Reino Unido, sabendo de antemão que, com ou sem acordo, o país sairá sempre pior deste processo do que entrou. Mas o que o debate nos Comuns também expôs foi a recusa a um não acordo, retrato fiel do beco em que nos encontramos: ao recusar a saída desordenada, Londres reabre a questão irlandesa sabendo que Bruxelas não tem vontade de reescrever o que já consta no acordo de saída, o que cristaliza um texto que voltará a ser chumbado em Westminster. Ou seja, continuamos no mesmo ponto: o caos metodológico só valida a desconfiança de Bruxelas em ceder ou desproteger a Irlanda nesta reta final. O resultado disso poderia ser duplo: provocar uma crise política em Dublin e reverter sem controlo o quadro de paz conquistado na região nas últimas duas décadas.
Depois de o conflito ter provocado quase 3500 mortos entre 1969 e 1998, ano em que foi assinado o Acordo de Belfast, a verdade é que a grande mudança comecou com a criação do mercado único europeu (janeiro de 1993), a institucionalização da livre circulação de mercadorias e a abolição das barreiras alfandegárias na UE. No ano seguinte, o IRA anunciou um cessar-fogo, primeiro gesto de uma série de iniciativas de pacificação que culminaria com a assinatura do acordo de paz. Pouco a pouco, as alfândegas foram desmanteladas, os pontos de controlo, os arames farpados e as torres de vigia desapareceram. Ao contrario do que aconteceu em Inglaterra e no Pais de Gales, os eleitores da Irlanda do Norte votaram maioritariamente contra o Brexit, sendo que nas zonas mais proximas da fronteira essa fasquia subiu para quase dois tercos. Nos dois lados da fronteira conhecem-se bem os méritos da integração europeia e não é à toa que Bruxelas tem mostrado a intransigência que lhe assiste na defesa desse percurso. Também não é inocente que a ameaça de um regresso ao passado tenha desencadeado, pela primeira vez em 20 anos, o tema da reunificação da Irlanda.
Como se sai então deste novelo, a dois meses do fim do prazo acordado para o Brexit? Para haver cedências de Bruxelas, May tem de associar o mandato colhido nesta semana nos Comuns a uma discussão séria e absolutamente clara sobre o que quer o Reino Unido renegociar. Até agora, foi incapaz de o fazer. Além disso, Londres tem de dar garantias a Bruxelas e a Dublin de que o seu plano é confiável e passível de ser legitimado largamente em Westminster. No ponto em que estamos, este cenário está longe de acontecer. Para evitar que o espectro de um não acordo regresse em força – mesmo que agora rejeitado nos Comuns – e que isso leve à demissão de vários ministros, a saída óbvia seria o pedido de extensão do artigo 50, válvula de escape que tem ganho terreno público e sido defendido por algumas capitais, entre elas Lisboa. Para tal, será sempre preciso consenso a 28 e uma definição do prazo extensível em função do objetivo final.
Se for apenas para comprar tempo para ratificação do acordo de saída, a data da última sessão plenária
O dramatismo da contagem decrescente do relógio do Brexit tende a favorecer a estratégia de May, espalhando alarmismo económico e social aos países expostos ao RU, sabendo que, com ou sem acordo, o país sairá pior do processo do que entrou.
do atual Parlamento Europeu (18 abril) poderia ser indicativa. Se for exigido mais tempo para negociações, então o início dos trabalhos no novo Parlamento Europeu (julho) pode ser preferível, ficando por exemplo os atuais deputados britânicos excecionalmente em funções até ao final do prazo revisto pelo artigo 50 – o que teria de ser definido quanto antes –, ou mesmo com um estatuto de observadores sem direito de voto – o que, de certa forma, violaria os direitos dos representantes de um Estado membro, como é o Reino Unido até formalmente sair. Outra via seria permitir que Londres realizasse eleições para o Parlamento Europeu, extinguindo-se o mandato dos eleitos no prazo da extensão acordada a 28, tendencialmente mais longo. Qualquer que seja o rumo, tudo isto continua a pedir clarificação institucional da UE, já que de Londres só chegam ambiguidades. Independentemente do roteiro, até a extensão do prazo implica um juízo político interno sobre Theresa May. O risco, para onde quer que nos viremos, permanece em cada esquina.