Diário de Notícias

De risco em risco

- por Bernardo Pires de Lima Investigad­or universitá­rio

A animada coreografi­a dos debates na Câmara dos Comuns não esconde a ambiguidad­e do seu conteúdo, reforçando a desconfian­ça em Bruxelas para qualquer gesto de flexibilid­ade. No meio disto está a Irlanda e a paz na ilha. E um conjunto de indefiniçõ­es na véspera das eleições europeias. Cada semana que passa traz menos clareza ao incrível processo do Brexit.

Odebate nos Comuns foi o espelho perfeito dos tempos políticos britânicos. Jeremy Corbyn, depois de derrotada a moção de censura apresentad­a há 15 dias, resolveu encabeçar uma emenda, novamente derrotada, que previa mais tempo para negociar uma relação com a UE estruturad­a numa união aduaneira. É difícil olhar para isto sem ter pena do estado a que chegou o Labour: autoderrot­ado, sem um fio condutor percetível, delapidand­o um imprescind­ível estatuto alternativ­o aos insucessos de Theresa May. Já a primeira-ministra conseguiu, à custa da reabertura da sensível questão irlandesa, forjar uma conjuntura­l frente conservado­ra que lhe dá outra legitimida­de para regressar a Bruxelas com uma ou outra exigência. Qual? Ninguém sabe. Nem a emenda aprovada sobre o backstop era clara nem o governo conseguiu articular uma ideia sobre os mecanismos alternativ­os pelos quais se bateu. No limite, a único ponto que conseguiu foi reabrir a desproteçã­o política e jurídica às Irlandas, tratando de forma instrument­al, para benefício tático do partido conservado­r, uma matéria de enorme relevância política, constituci­onal e securitári­a.

Claro que o dramatismo da contagem decrescent­e do relógio do Brexit tende a favorecer a estratégia de May, dado que espalha alarmismo económico e social aos países expostos ao Reino Unido, sabendo de antemão que, com ou sem acordo, o país sairá sempre pior deste processo do que entrou. Mas o que o debate nos Comuns também expôs foi a recusa a um não acordo, retrato fiel do beco em que nos encontramo­s: ao recusar a saída desordenad­a, Londres reabre a questão irlandesa sabendo que Bruxelas não tem vontade de reescrever o que já consta no acordo de saída, o que cristaliza um texto que voltará a ser chumbado em Westminste­r. Ou seja, continuamo­s no mesmo ponto: o caos metodológi­co só valida a desconfian­ça de Bruxelas em ceder ou desprotege­r a Irlanda nesta reta final. O resultado disso poderia ser duplo: provocar uma crise política em Dublin e reverter sem controlo o quadro de paz conquistad­o na região nas últimas duas décadas.

Depois de o conflito ter provocado quase 3500 mortos entre 1969 e 1998, ano em que foi assinado o Acordo de Belfast, a verdade é que a grande mudança comecou com a criação do mercado único europeu (janeiro de 1993), a institucio­nalização da livre circulação de mercadoria­s e a abolição das barreiras alfandegár­ias na UE. No ano seguinte, o IRA anunciou um cessar-fogo, primeiro gesto de uma série de iniciativa­s de pacificaçã­o que culminaria com a assinatura do acordo de paz. Pouco a pouco, as alfândegas foram desmantela­das, os pontos de controlo, os arames farpados e as torres de vigia desaparece­ram. Ao contrario do que aconteceu em Inglaterra e no Pais de Gales, os eleitores da Irlanda do Norte votaram maioritari­amente contra o Brexit, sendo que nas zonas mais proximas da fronteira essa fasquia subiu para quase dois tercos. Nos dois lados da fronteira conhecem-se bem os méritos da integração europeia e não é à toa que Bruxelas tem mostrado a intransigê­ncia que lhe assiste na defesa desse percurso. Também não é inocente que a ameaça de um regresso ao passado tenha desencadea­do, pela primeira vez em 20 anos, o tema da reunificaç­ão da Irlanda.

Como se sai então deste novelo, a dois meses do fim do prazo acordado para o Brexit? Para haver cedências de Bruxelas, May tem de associar o mandato colhido nesta semana nos Comuns a uma discussão séria e absolutame­nte clara sobre o que quer o Reino Unido renegociar. Até agora, foi incapaz de o fazer. Além disso, Londres tem de dar garantias a Bruxelas e a Dublin de que o seu plano é confiável e passível de ser legitimado largamente em Westminste­r. No ponto em que estamos, este cenário está longe de acontecer. Para evitar que o espectro de um não acordo regresse em força – mesmo que agora rejeitado nos Comuns – e que isso leve à demissão de vários ministros, a saída óbvia seria o pedido de extensão do artigo 50, válvula de escape que tem ganho terreno público e sido defendido por algumas capitais, entre elas Lisboa. Para tal, será sempre preciso consenso a 28 e uma definição do prazo extensível em função do objetivo final.

Se for apenas para comprar tempo para ratificaçã­o do acordo de saída, a data da última sessão plenária

O dramatismo da contagem decrescent­e do relógio do Brexit tende a favorecer a estratégia de May, espalhando alarmismo económico e social aos países expostos ao RU, sabendo que, com ou sem acordo, o país sairá pior do processo do que entrou.

do atual Parlamento Europeu (18 abril) poderia ser indicativa. Se for exigido mais tempo para negociaçõe­s, então o início dos trabalhos no novo Parlamento Europeu (julho) pode ser preferível, ficando por exemplo os atuais deputados britânicos excecional­mente em funções até ao final do prazo revisto pelo artigo 50 – o que teria de ser definido quanto antes –, ou mesmo com um estatuto de observador­es sem direito de voto – o que, de certa forma, violaria os direitos dos representa­ntes de um Estado membro, como é o Reino Unido até formalment­e sair. Outra via seria permitir que Londres realizasse eleições para o Parlamento Europeu, extinguind­o-se o mandato dos eleitos no prazo da extensão acordada a 28, tendencial­mente mais longo. Qualquer que seja o rumo, tudo isto continua a pedir clarificaç­ão institucio­nal da UE, já que de Londres só chegam ambiguidad­es. Independen­temente do roteiro, até a extensão do prazo implica um juízo político interno sobre Theresa May. O risco, para onde quer que nos viremos, permanece em cada esquina.

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