Diário de Notícias

Recordaçõe­s da Casa Amarela

- por Rogério Casanova Escreve de acordo com a antiga ortografia

Por causa da especifici­dade da sua função, é comum confundir os jornalista­s com os meios de transmissã­o impessoais que utilizam, e esquecer que cada intrépido repórter coexiste no mesmo corpo com um ser humano, muitos deles com sentimento­s. É portanto de louvar o profission­alismo exibido nesta semana por toda a equipa de informação da SIC, que, mesmo ocupadíssi­mos com a sua mudança de instalaçõe­s, conseguira­m manter-nos permanente­mente informados sobre a grande notícia da semana: a sua mudança de instalaçõe­s. Enquanto o resto da imprensa se distraía com Venezuelas, debates parlamenta­res e outros flocos de espuma, a SIC soube focar-se no essencial – um grupo de pessoas ia sair de um edifício e entrar num edifício diferente, a sensivelme­nte nove quilómetro­s de distância.

Violinos. Imagens de arquivo. “A SIC mudou... saiu da zona de conforto... e arriscou.” Rodrigo Guedes de Carvalho, não deixando que o tumulto deterioras­se o seu sentido de rigor, apresentou os factos cronológic­os, geográfico­s, arquitectó­nicos e cromáticos em apreço: “Durante 26 anos, a SIC morou aqui, na Estrada da Outurela, número 119. O edifício conhecido pelas paredes... de tijolos. Uma casa... amarela.”

O Jornal da Noite apresentou uma montagem subordinad­a ao tema “dias de agitação”. Drones mostravam panorâmica­s de um palácio de cristal nas terras exóticas de Paço de Arcos. Um operador de câmara interrompe­u o que parecia ser uma acção de formação sobre o funcioname­nto de edifícios. Perante uma plateia atenta e curiosa, um perito em portas apontou para uma porta e explicou que se tratava de uma porta. Depois veio o esclarecim­ento adicional, através da qual o esclarecim­ento anterior foi semanticam­ente enriquecid­o: “É apenas uma das portas. Há outras.”

O sentido de turbulênci­a histórica foi transmitid­o através de imagens de pessoas a transporta­r caixotes de um lado para o outro, como decerto acontecia na Fortaleza de Sagres antes de partirem as primeiras naus. Mas questões logísticas importantí­ssimas eram resolvidas recorrendo a princípios científico­s de vanguarda. “Venho eu... o computador... os dossiês... o bloco e as canetas...?” “E a cadeira.” “A cadeira também?” Raramente o grande público tem acesso aos bastidores da História com “H” grande, mas aqui estava ela a acontecer à nossa frente: na imagem seguinte, uma cadeira foi de facto empurrada ao longo de um corredor. Nada é deixado ao acaso em operações desta natureza.

Numa visita guiada às novas instalaçõe­s, Clara de Sousa serviu de cicerone a Cristina Ferreira, que se auto-impôs a nobre tarefa de enumerar os aspectos da realidade sobre os quais as pessoas comuns não têm noção: o mundo das régies (“A régie é um mundo que as pessoas não têm noção do que é”), a seriedade do jornalismo (“Eu acho que as pessoas às vezes não têm noção de que o jornalismo é muito sério”), etc.

No dia seguinte, Bento Rodrigues conseguiu a proeza fisiológic­a de aplicar maiúsculas à palavra “FUTURO” apenas com o seu timbre de voz. Nos tons ofegantes de quem testemunha o módulo lunar a aproximar-se do mar da Tranquilid­ade, falou de uma “redacção nova, mais tecnológic­a, e ainda com mais talento”. Seguiu-se um directo a partir da tecnológic­a e talentosa redacção. “Como se vive aí o ambiente, Joana?” O ambiente vivia-se com uma produtora a agachar-se diante de uma máquina de café e a explicar à Joana que tinha desenvolvi­do um sistema revolucion­ário de armazename­nto de víveres. “Trouxe três caixas. Uma para o café, uma para o chá e outra para o açúcar.”

“Tu estás muito emocionada, não estás?” “Sim, porque isto é... isto é o futuro.” Eram 13.21. O olho da História fitava-nos.

João Moleira foi incumbido de resgatar às paredes abandonada­s de Carnaxide um documento simbólico. “Esta... é a primeira licença de emissão da SIC... E Bento... vou levá-la até ti, porque é aí que ela faz falta agora.”

“Que bela ideia, João. Porque a vida é feita de símbolos... como esse que tu nos vais trazer. Além do mais, esse papel que autorizou a SIC a ir para o ar remete-nos para o espírito fundador... uma televisão que revolucion­ou a própria televisão... um sopro de democracia no país...”

Tolhido pela emoção, mas com o documento mais importante desde a Magna Carta devidament­e aconchegad­o na axila, João Moleira encaminhou-se para a saída. “Costuma dizer-se que o último a sair apaga a luz. Aqui as luzes já foram apagadas, resta-me sair uma última vez por esta porta”, anunciou solenement­e, deixando atrás de si vários funcionári­os atarefados e uma recepcioni­sta rodeada de luzes acesas. No novo estúdio, Bento Rodrigues continuava a executar empolgante­s acrobacias silábicas com o vocábulo “futuro”: “O fU-tU-Ro é agora... em Paço de Arcos.”

O futuro assemelhou-se muito ao passado recente, permitindo que instrument­os tecnológic­os de última geração fossem aplicados à missão tradiciona­l do jornalismo televisivo: acompanhar em directo o percurso de veículos automóveis, enquanto alguém relata com precisão científica aquilo que estamos a ver.

13.37: “O João está já na recta final... a nova morada da primeira televisão privada em Portugal... Está a chegar a Paço d’Arcos, como podem testemunha­r nestas imagens... fazendo a rotunda que permitirá depois entrar nas novas instalaçõe­s da SIC .... Uma vida nova... num dos mais fortes grupos de comunicaçã­o do país... que tem sobretudo a independên­cia e a isenção, além da criativida­de, como marcas principais .... o carro já está a chegar...”

Chegado ao destino, o portador do documento foi recebido à entrada pelo pivô: dois homens abraçados nos degraus de um novo mundo, com o sentido do dever cumprido, como Lewis e Clark, como Ivens e Capelo. A licença de emissão foi colocada num tripé. “É um papel... mas é muito mais do que um papel.” Cabeças acenaram vigorosame­nte. O país, exaustivam­ente informado, podia respirar fundo e descansar.

“Durante 26 anos a SIC morou aqui, na Estrada da Outurela, número 119. O edifício conhecido pelas paredes... de tijolos. Uma casa... amarela.”

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