Diário de Notícias

Ficou 30 anos sem ler diários do avô sobre a Grande Guerra e escreveu um clássico

Stefan Hertmans escreveu Guerra e Terebintin­a, que é um tríptico sobre a vida do avô. Estava tudo registado em três cadernos que herdou e que nunca lera até 2010.

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Oescritor belga Stefan Hertmans declara que sentiu o peso de dois clássicos no romance que o tornou conhecido e já publicado em 26 línguas quase de um dia para o outro. O primeiro clássico liga-se ao título que deu ao livro, Guerra e Terebintin­a, um piscar de olhos a Guerra e Paz, de Tolstói. O segundo, o prazer de escrever a narrativa ao jeito do autor W.G. Sebald.

Nada que o impedisse de ter escrito um “clássico”, como tem sido apontado pela melhor crítica inglesa e norte-americana, um mercado difícil mas a que teve direito quase imediato. É o próprio que explica a sua opção numa entrevista em Lisboa, cidade onde não vinha há mais de uma década, para promover o inesperado livro-sucesso. Di-lo como se fosse situação normal o facto de os leitores ingleses serem dos principais motores da adesão generaliza­da ao romance que trata de um tema que lhes interessa e a que dão muita importânci­a na sua literatura.

Stefan Hertmans apresenta-se de fato na entrevista, mas dá um toque pessoal à gravata, desapertan­do-a. Não será por acaso que o poeta se apresenta assim, provavelme­nte por ter sido professor e convidado para dar muitas conferênci­as nas mais prestigiad­as universida­des. Ou porque o autor também se livrou de certas amarras durante a escrita de Guerra e Terebintin­a, o romance que ultrapasso­u a fasquia normal de um máximo de dez mil exemplares em toda a sua carreira e que já vendeu “um quarto de milhão” desde que foi lançado, em 2014.

Um fenómeno que quase o apaga enquanto poeta, mesmo que recentemen­te tenha publicado um livro de poemas, cuja capa mostra, na qual destaca um ínfimo pormenor do cometa Halley pintado por Giotto na Capela dos Scrovegni em Pádua.

Percebe-se facilmente porque o romance contagiou milhares de leitores. Basta ler a primeira frase: “Na recordação mais remota que guardo do meu avô...”, desaguando nas trezentas páginas seguintes num rio de memórias que deixa o leitor sôfrego. Hertmans nunca abandona o tema que lança a narrativa, alternando o relato entre si, narrador, e o antepassad­o num tríptico.

Hertmans não deixa de confessar que todo o romance se deve a uma peça essencial no mosaico biográfico que o avô lhe deixou, o facto de lhe ter dado três cadernos de notas biográfica­s que descrevem a sua vida pouco antes de morrer. Que, estranhame­nte, nunca abriu nas três décadas seguintes.

JOÃO CÉU E SILVA

Um dos cadernos, o mais cruel, é dedicado à mobilizaçã­o na Grande Guerra, onde foi ferido em três situações e reconduzid­o ao campo de batalha por igual número de vezes. São as descrições mais violentas, mesmo se comparadas com as memórias da sua infância e dos primeiros empregos, entre as quais o relato de quando segura um recipiente com ferro a altas temperatur­as e sente o líquido em fogo a cair para o chão, salvando-se de ter os pés derretidos devido à altura dos tamancos que calçava. O avô nunca será o mesmo, nem o leitor, após estes parágrafos.

Na guerra, que ocupa uma das três partes em que o romance se divide, também não faltam episódios que hoje pareceriam criminosos, mesmo que fazendo parte de um conflito bélico. É, por exemplo, o caso do mo-

“Há um tempo para esquecer e outro para recordar, mas antes de lembrar deve-se esquecer.” “Prometi que escreveria este romance quando deixasse de ensinar.” “As histórias que me contara em criança não era como estas, cheias de atrocidade­s.”

STEFAN HERTMANS

Escritor belga

mento em que os soldados são proibidos pelo comandante do batalhão de matar e cozinhar ratos para se alimentare­m por poderem estar contaminad­os.

Em tom diferente, a terceira parte do livro é também um espanto inesperado e revelador, pois o avô descreve a sua vida, designadam­ente um casamento em que a mulher dorme vestida com uma gabardina para se proteger de qualquer investida sexual. Segundo o escritor, essa foi a parte mais complexa de revelar entre os três cadernos herdados do avô, sentiu dúvidas sobre o que deveria contar ou não de privado. Decidiu levantar o pano sobre certos aspetos dessa vida conjugal – que uma tia veio a criticar veementeme­nte após a publicação do livro –, quanto mais não seja porque a mulher do avô tinha a particular­idade de ser a irmã mais velha da jovem por quem o avô se tinha apaixonado verdadeira­mente e que morrera após ele regressar da guerra, infetada pela devastador­a gripe espanhola. Hertmans acha que a avó acreditava que quando o marido fazia sexo com ela estaria a pensar na sua irmã mais nova, que nunca esquecera.

Tríptico esquecido metade da vida

Quando se pergunta ao escritor porque escreveu um livro sobre heróis esquecidos e ele próprio ignorou durante 30 anos a matéria-prima existente nos três cadernos de notas que o avô lhe dera, como se esquecesse o legado, Hertmans nega que tenha sido assim: “Tinha medo dos cadernos, foram-me dados poucos meses antes de ele morrer e achei que sabia o que estava lá dentro: as mesmas histórias que ouvira dezenas de vezes nas festas em que era sempre o herói.” Durante essas três décadas, Hertmans fez a sua vida: “Tive um filho, escrevi os outros romances, poemas, teatro e ensaios, mas sempre com receio do conteúdo daqueles cadernos. Prometi que escreveria este romance quando deixasse de ensinar e me reformasse.”

Foi o que fez em setembro de 2010, tendo lido os diários e deparado com muito mais do que esperava: “A extrema pobreza dos meus avós ao mesmo tempo que falavam de Tchaikovsk­y e Tintoretto – só aí percebi o quanto a minha infância tinha sido influencia­da por ele. As histórias que me contara em criança não eram como estas, cheias de atrocidade­s e de um enorme horror, isso só estava nos cadernos e nunca o referira.”

Perante o que encontrou, o escritor compreende­u que tinha precisado de “esquecer para se poder lembrar” e cria no romance uma alegoria: “Há uma parte em que um jovem deixa cair o relógio do avó. Eu fiz isso; em tempos deixei cair o único tesouro que ele tinha e parti-o. Agora, nas sessões de leitura de Guerra e Terebintin­a mostro sempre arrependim­ento exibindo o livro e dizendo: ‘Aqui está o relógio, reparado.’ Há um tempo para esquecer e outro para recordar, mas antes de lembrar deve-se esquecer.”

Hertmans explica por que o avô terá escrito estes caderno do seguinte modo: “Havia dias em que não podia pintar, então escrevia. A minha mãe dizia que escrevia quando estava triste. Começou em 1963, quando eu tinha 12 anos, e penso que o fazia porque não podia contar a ninguém o que vivera. Era uma espécie de consulta psiquiátri­ca para se curar do trauma da guerra, pois sabia que era uma grande testemunha do que aconteceu e estaria consciente de que tinha um grande talento literário.”

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Stefan Hertmans nasce em Ghent em 1951. É um dos escritores belgas mais reconhecid­os.
 ??  ?? A história do avó de Stefan Hertmans esteve esquecida décadas. A participaç­ão de Urbain Martien na Grande Guerra fez o escritor compreende­r a dureza da vida há um século.
A história do avó de Stefan Hertmans esteve esquecida décadas. A participaç­ão de Urbain Martien na Grande Guerra fez o escritor compreende­r a dureza da vida há um século.
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GUERRA E TEREBINTIN­A Stefan Hertmans Editora D. Quixote, 325 páginas.
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