Diário de Notícias

Um passado que não quer passar

Descoberto, ameaçou falar, denunciand­o todos quantos tinham metido a mão na caixa corrupta, que também era geral – e de depósitos.

- por António Araújo Historiado­r. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Entre as muitas efemérides de 2019, arriscamo-nos a esquecer a mais popular de todas, a da pizza Margherita. Há precisamen­te 130 anos, a 11 de Junho de 1889, Rafaelle Esposito saiu da sua pizzaria em Sant’Anna di Palazzo, no centro de Nápoles, levando debaixo do braço três variedades de pizza. Uma delas primava pela singeleza dos materiais: tomate e mozarela salpicados com folhas de basílico, em patriótica réplica do vermelho, branco e verde das cores da bandeira italiana. De visita à cidade, a rainha queria provar aquela massa de pão que o povo comia pelas ruas e que na altura nem se chamava pizza, termo então usado para designar uma torta doce. Na manhã seguinte, o cozinheiro-chefe do palácio foi ao restaurant­e de Rafaelle perguntar-lhe como se chamava aquela pizza de que a rainha tanto havia gostado. “Margherita”, respondeu o pizzaiolo. E hoje lá está, ao coração de Nápoles, na Pizzeria Brandi, uma placa comemorati­va do centenário deste sucesso gastronómi­co. Com justificad­o orgulho, exibe-se ainda uma carta laudatória da pizza tricolor, assinada por Camillo Galli, secretário particular da rainha Margarida de Sabóia.

Bom demais para ser verdade. Aturadas e recentes investigaç­ões garantem que a assinatura de Camillo Galli é falsa, como falso é o selo régio inscrito na missiva da Casa de Sabóia. Os proprietár­ios da Pizzeria Brandi defendem-se dizendo que a carta não foi escrita nem assinada por Galli mas redigida por um colaborado­r seu, mas são incapazes de contestar os rigorosos estudos que mostram que muito antes, por volta de 1830, já em Nápoles se comia uma pizza de tomate e mozarela, de verde tingida por raminhos de basílico, também conhecido por manjericão-de-folha-larga. Ao que parece, Rafaelle Esposito vendeu a pizzaria aos cunhados, os irmãos Brandi, e diz-se que foram estes, para vencer a crise da década de 1930, que decidiram forjar uma história que si non è vera...

Diz-se também que os maiores consumidor­es de pizza do mundo são os norueguese­s e que 93% dos americanos comem pizza uma vez por mês, pelo menos, o que dá uma média espantosa: a cada segundo que passa, são ingeridas 350 fatias de pizza nos Estados Unidos. A mais popular de todas é, obviamente, a Margherita. Os investigad­ores até podem ter razão quando afirmam que a historieta napolitana não passa de uma lenda mas são incapazes de explicar a origem do nome da pizza mais popular do mundo. Acreditemo­s que se deve a Margarida de Sabóia, ou de alguém por ela.

Apesar de ter nascido com um nome comprido, próprio de casas reais, Margarida Maria Teresa Joana não estava destinada a ser monarca de Itália. Só ascendeu ao trono devido aos consabidos malefícios do tabaco, que vitimaram a primeira candidata ao lugar, a arquiduque­sa Matilde da Áustria. O reiVítor Emanuel II já tinha acertado o casamento de seu filho Humberto com a arquiduque­sa austríaca mas esta morreu trágica e estupidame­nte, numa noite quente de Junho de 1867, quando se preparava para ir ao teatro emViena. Enquanto aguardava pelos demais membros da imperial família, Matilde decidiu fumar um cigarrito à varanda do castelo de Hetzendorf. Nisto chegou seu pai, anti-tabagista furioso, e Matilde não teve melhor lembrança do que esconder a beata acesa nos interiores do seu vestido, feito de tules delicadíss­imos, altamente inflamávei­s. Num instante, pegou fogo. Tomada de pânico, a princesa fugiu espavorida pelos corredores do castelo, o que só teve como efeito atear ainda mais as chamas que a devoraram fatalmente. Morta Matilde, avançou Margarida. Em 22 de Abril de 1868, no palácio real de Turim, deu-se o casamento com seu primo Humberto, que dez anos depois subiria ao trono de Itália. Foi uma união infeliz, em constante sobressalt­o. Logo no primeiro ano de reinado, num giro pelo país, Humberto seria vítima de uma tentativa de assassinat­o em Nápoles, pátria das pizzas. O desastrado homicida era um cozinheiro anarquista que tentou matar o rei com uma faca minúscula, “boa para fatiar maçãs”, como diria à polícia o dono da loja que lhe vendeu a arma. Entristeci­da pelas infidelida­des do marido, Margarida tornou-se virtuosa benemérita e patrona das artes. Apaixonada pelo montanhism­o, foi a primeira mulher a escalar um dos picos mais elevados dos Alpes, o Monte Rosa, e ainda hoje existe, a mais de 4500 metros de altitude, um abrigo-observatór­io denominado Capanna Regina Margherita, homenagean­do uma rainha que também foi precursora no uso dos automóveis. Em 1897, nova tentativa de regicídio, quando um ferreiro anarquista tentou esfaquear Humberto no hipódromo de Roma. À terceira foi de vez. Humberto I, a quem chamaram Il Buono, militarão e ultraconse­rvador, de formidávei­s bigodes, acabou por ser morto à bala por um tecelão e anarquista, claro. Em Monza, Julho de 1900, quando aí se encontrava para medalhar os atletas de uma competição de ginástica. Foi sepultado no panteão de Roma, com as devidas honras.

O tempo de Humberto I não foi uma belle époque, ainda que assim lho chamem. Marcado por convulsões sociais profundas, o seu reinado assistiu ao Motim de Milão de 1898, também conhecido por “protesto do estômago”, reprimido à custa de mais de cem mortos e de quinhentos feridos. O rei enviou um telegrama de felicitaçõ­es ao general Fiorenzo Bava-Beccaris por ter conseguido esmagar a populaça ao fim de vários meses de tumultos e, mais tarde, fê-lo grande-oficial da Ordem Militar de Sabóia. O povo não gostou.

Uma das causas de descontent­amento popular para com o governo de Humberto foi a sua cumplicida­de, e a dos seus ministros, no crime organizado do Mezzogiorn­o. Apesar de ter mais de 70% de analfabeto­s, os deputados da região votavam sempre contra a construção de escolas na Sicília e na Campânia, pois a Máfia e a Camorra considerav­am – e bem – que o aumento da escolarida­de iria trazer uma mudança social profunda e que essa mudança iria pôr em causa as velhas teias de compadrio em que assentava o poder dos padrinhos. Em 1893, rebentou o escândalo da Banca Romana. O governador do banco era Bernardo Tarlongo, um homem de pouquíssim­as letras que por meios obscuros conquistar­a aquele lugar. Avarento e frugal, não lhe conheciam amantes nem dívidas ao jogo, mas ainda assim Tarlongo estava em apuros devido às promíscuas facilidade­s de crédito que concedera à farta. Para se salvar, recorreu a um expediente clássico, à Alves Reis, e mandou imprimir uma dupla série de notas com números iguais. Descoberto, ameaçou falar, denunciand­o todos quantos tinham metido a mão na caixa corrupta, que também era geral – e de depósitos. Na véspera de ser detido, disse ao Corriere della Sera: “Se me quiserem responsabi­lizar por culpas não minhas, serei obrigado a fazer um escândalo.” Com os documentos que guardara no cofre, Tarlongo sabia que na sua queda poderia arrastar uma parte substancia­l da classe política daquele tempo. Os políticos perceberam logo o recado. No parlamento, dois dos maiores homens públicos da altura, Francesco Crispi e Giovanni Giolitti, inimigos figadais, acusaram-se mutuamente de ter sabido do imbróglio da Banca Romana e de o ter ocultado. Em Julho de 1894, como se esperava, Bernardo Tarlongo foi absolvido. O descontent­amento popular atingiria o auge nos anos vindouros. Tumultos nas ruas, desmandos anarquista­s, entre a multidão destacava-se um demagogo incendiári­o de nome Benito Mussolini. Nacionalis­ta fervorosa, uma mulher apoiou entusiasti­camente a ascensão de Mussolini ao poder. Sim, foi mesmo ela. Margarida de Sabóia, a rainha da pizza.

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