As tragédias em série no Brasil
Oano de 2019 não nos tem dado trégua no Brasil. Já nos atingiu nos primeiros dias de janeiro com a tragédia de Brumadinho, o rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro da gigantesca companhia Vale nos arredores da pequena cidade de Minas Gerais. Ao se decompor, ela tomou uma enorme região com sua lama tóxica e deixou, até agora, 182 pessoas mortas e outras tantas desaparecidas – que, em breve, também serão arroladas na primeira categoria. Uma catástrofe de tais dimensões tem consequências económicas, sociais e ecológicas que levarão anos para reverter – se isto for possível. Muitas famílias perderam todos os seus membros. Outras perderam tudo que possuíam. Um importante rio que banhava a região, o Paraopeba, atingindo várias cidades, está tecnicamente morto. A paralisação das atividades da mineradora na cidade, por mais criminosas que fossem, levará à falência 70% de seus cidadãos, que dependiam dela.
Quando ainda estávamos tentando entender o que acontecera em Brumadinho, um quase furacão vergastou a cidade do Rio de Janeiro na noite do dia 7 último, deixando também sete mortos e inúmeros patrimónios destruídos. A inacreditável chuva e o vento a mais de 110 quilómetros por hora açoitavam os edifícios como se quisessem arrancá-los de suas fundações. Mais de 600 árvores, muito altas e mais podadas na base do que no topo, dançavam e caíam sobre as construções mais baixas e os carros, levando consigo os fios e os postes de iluminação, os sinais de trânsito e outras árvores. Em certas regiões, a água chegou à cintura dos que tentavam atravessá-la; noutras, subiu à altura dos segundos andares de lojas comerciais e de casas particulares. Até hoje há milhares de pessoas sem água, luz e telefone em suas casas. Um barranco se desfez e cobriu de terra um autocarro que passava por baixo – o condutor se salvou, mas os dois passageiros não tiveram essa sorte.
O Rio, veterano de calamidades – e, à sua maneira, indestrutível –, acordou no dia seguinte de pás às mãos para remover os escombros e a lama. Ainda fazia isto quando, apenas 24 horas depois da chuva, recebeu a notícia de que um alojamento no centro de treinamento do Flamengo, na zona oeste, estava em chamas. Nele habitavam provisoriamente os jogadores das divisões inferiores do clube, todos grandes promessas do futebol brasileiro. Suspeitava-se de que houvesse mortos, e isto desgraçadamente se confirmou – dez dos adolescentes tinham morrido no fogo provocado por curto-circuito em seis aparelhos de ar condicionado. Ligados em série, eles se inflamaram e o fogo se espalhou pela rede elétrica e atingiu o poliuretano contido nas paredes do alojamento. Os miúdos podem ter morrido dormindo por terem ficado expostos por muito tempo à lenta queima do gás cianeto. O incêndio fez o resto.
E quando se pensava que já tínhamos esgotado nossa cota de desgraças para o mês, cai um helicóptero na segunda-feira última e mata nosso colega, o jornalista Ricardo Boechat, de 66 anos. Era um dos apresentadores de rádio e TV mais populares do Brasil. E também dos mais incisivos – seu programa matinal de rádio mordia os calcanhares de todos, figuras públicas ou não, que, em sua opinião, estivessem fazendo alguma coisa errada. Não houve deputado, senador, governador de Estado ou presidente da República que ele não tivesse bombardeado nos últimos vinte anos com sua lógica implacável, fundamentada por informações exclusivas e apresentada com um misto de indignação e bom humor. Colecionou processos na justiça e safou-se de todos, porque dizia a verdade. O povo o adorava – e, de certa forma, ele era a sua voz.
A quem não é brasileiro, talvez seja difícil avaliar a extensão dessas tragédias em sucessão. A Vale já fora responsável, há menos de quatro anos, por outra tragédia parecida: o rompimento de uma barragem em Mariana, também em Minas Gerais. O prejuízo em vidas foi menor do que o de Brumadinho, mas o estrago ecológico foi ainda mais monstruoso – outro rio, o Doce, este de grandes proporções, foi envenenado. Mas a empresa parece não ter aprendido a lição. Munindo-se de certificados, certamente comprados por muito dinheiro, continuou a pôr as populações em risco. Pois, agora, não apenas terá de se explicar de verdade, como várias de suas outras gigantescas operações estão paralisadas. Não pode haver outra Mariana, nem outro Brumadinho.
Ao contrário da Vale, à qual não há um único brasileiro que seja simpático, o Flamengo é o clube mais popular do país, talvez do mundo. Seu número de adeptos, estimado pelos institutos de pesquisa, aproxima-se dos 40 milhões, que o amam perdidamente, vestem nas ruas a sua camisola e fazem dele a sua vida. Esses adeptos, que se espalham por todas as cidades brasileiras, mesmo as menores, estão chocados com o incêndio nas suas instalações, mas não querem acusar ninguém antes da apuração completa dos factos. Já os adversários do Flamengo tentam, em contrapartida, imputar-lhe a culpa pela morte dos garotos, alegando que o alojamento não tinha certificados fornecidos pelas autoridades. Bem, a Vale tinha esses certificados – e de que adiantou? O helicóptero que matou Ricardo Boechat também estava perfeitamente regularizado – e, da mesma maneira, ele já não está entre nós.
Talvez haja uma coisa chamada destino. Mas não no sentido do acaso. Talvez estivesse escrito que, um dia, iríamos pagar por nosso jeito alegre, airoso e descuidado de ser.