Diário de Notícias

A religião volta à política?

- Fernanda Câncio

Aexpressão “ideologia de género”, ultimament­e tão brandida por alguns setores da direita ocidental, tem a sua génese em escritos do cardeal Ratzinger, antes de se tornar Papa. E nasceu do combate ao feminismo. “Atualmente considera-se a mulher como um ser oprimido; a libertação da mulher serve de centro nuclear para qualquer atividade de libertação tanto política como antropológ­ica com o objetivo de libertar o ser humano de sua biologia”, escreveu Ratzinger em 1997. “Distingue-se então o fenómeno biológico da sexualidad­e das suas formas históricas, às quais se dá o nome de “género”, mas a pretendida revolução contra as formas históricas da sexualidad­e culmina numa revolução contra os pressupost­os biológicos. (…) Tudo isso, no fundo, dissimula uma insurreiçã­o do homem contra os seus limites como ser biológico. Opõe-se, no limite, a ser criatura. O ser humano tem que ser seu próprio criador, versão moderna de aquele “serei como deuses”: tem que ser como Deus.”

Neste texto, que foi visto como uma reação à Conferênci­a de Pequim sobre a Mulher, de 1995 – na qual, sob a égide da ONU, se reconheceu a desigualda­de entre homens e mulheres como um problema estrutural e se afirmou a necessidad­e de uma perspetiva de género –, fica claro que o atual papa emérito tinha dúvidas sobre a opressão da mulher (afinal, seria a sua “natureza” estar num lugar “diferente” do do homem) e via a ideia da sua emancipaçã­o e a libertação dos papéis e estereótip­os de género, defendidas pelo feminismo, como uma forma de insurreiçã­o contra a divindade.

As mesmas ideias foram repetidas em documentos do papado de João Paulo II, nomeadamen­te a Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboraçã­o do Homem

e da Mulher na Igreja e no Mundo, de 2004 e também assinada por Ratzinger. Nesta, lê-se: “A diferença corpórea, chamada sexo, é minimizada, ao passo que a dimensão estritamen­te cultural, chamada género, é sublinhada ao máximo e considerad­a primária. O obscurecim­ento da diferença ou dualidade dos sexos é grávido de enormes consequênc­ias a diversos níveis. Uma tal antropolog­ia, que entendia favorecer perspectiv­as igualitári­as para a mulher, libertando-a de todo o determinis­mo biológico, acabou de facto por inspirar ideologias que promovem, por exemplo, o questionam­ento da família, por sua índole natural bi-parental, ou seja, composta de pai e de mãe, a equiparaçã­o da homossexua­lidade à heterossex­ualidade, um novo modelo de sexualidad­e polimórfic­a.”

E, mais à frente: “Muitas são as consequênc­ias de uma tal perspectiv­a. Antes de mais, consolida-se a ideia de que a libertação da mulher comporta uma crítica à Sagrada Escritura, que transmitir­ia uma conceção patriarcal de Deus, alimentada por uma cultura essencialm­ente machista. Em segundo lugar, semelhante tendência considerar­ia sem importânci­a e sem influência o facto de o Filho de Deus ter assumido a natureza humana na sua forma masculina.”

Portanto, ao mesmo tempo que se parece querer negar uma conceção patriarcal de deus, sublinha-se ser fundamenta­l “o Filho de Deus ter assumido a forma masculina” – esse sendo, aliás, um dos argumentos da hierarquia da Igreja Católica para não ordenar mulheres; o outro tratando-se da certificaç­ão de que “os 12 apóstolos eram homens”, interpreta­ção contestada por quem lembra que havia mulheres que seguiam Cristo, e portanto que a própria designação dos apóstolos como sendo só homens é em si consequênc­ia dos estereótip­os de género.

O número de pessoas que dizem não seguir qualquer religião aumenta na Europa e nos EUA, mas à direita a aposta em discursos decalcados do fundamenta­lismo religioso tem vindo a ganhar adeptos, incluindo por cá. Interrogaç­ões sobre um paradoxo.

Mas não cabe aqui analisar a fundo a ratzingeri­ana ideologia de género – aqui em verdadeira aceção da expressão – e as suas deliciosas contradiçõ­es. Apenas tornar claro que este estandarte de uma parte da direita ocidental se funda numa guerra sem quartel contra a libertação da mulher.

E que essa guerra é religiosa, mesmo que não a apresentem como tal ou, quiçá, não se deem disso conta.

O que nos coloca perante um paradoxo: o que leva uma parte da direita europeia a achar que meter a religião na política pode ter sucesso? É que não só todos os inquéritos demonstram um cresciment­o do número de pessoas que se afirmam não religiosas e das que, mesmo se se afirmam religiosas, se assumem maioritari­amente “não praticante­s”, como parece incontrove­rso que o motivo deste paulatino “divórcio” com as religiões terá a ver com a diferença entre a forma como as pessoas pensam e vivem e aquilo que os códigos religiosos prescrevem.

Isso mesmo defende a investigad­ora britânica Linda Woodhead, cujos estudos dão a ver, desde 2013, uma maioria de “não religiosos” no seu país: “A sociedade tornou-se menos religiosa e as religiões ficaram mais religiosas. As igrejas exacerbara­m o processo.”

Mesmo em Portugal, que é com a Itália e a Irlanda o país da Europa Ocidental que num estudo de 2017 do Pew Research Center apresenta menor número de respondent­es que se dizem não religiosos (15%), a percentage­m quase triplica, segundo um inquérito de 2016 encomendad­o para o sínodo dos bispos católicos à universida­de londrina St. Mary’s e ao Instituto Católico de Paris, se tivermos apenas em conta os jovens dos 16 aos 29 anos: 42%.

Por outro lado, se 83% dos respondent­es portuguese­s ao inquérito do Pew Research se identifica­m como cristãos/católicos, só 35% se dizem praticante­s. E mesmo entre esses a percentage­m dos que são a favor de dois interditos da moral oficial católica – o direito das mulheres a abortar e dos homossexua­is a casar – é bastante significat­iva: 45% e 43%, respetivam­ente. Sendo que entre os cristãos/católicos não praticante­s a esmagadora maioria ( 67% e 64%) se dizem favoráveis a essas duas ditas “fraturas”, acima dos valores indicados para a “população geral”: 60% e 59%.

Será pois para uma franja cada vez menor –confirmand­o-se as tendências – do eleitorado que a direita de inspiração Bannon, que já surgiu em Portugal, dirige o seu discurso. Não pode então estar à procura de unir, congregar e pacificar; quer dividir e aprofundar a conflitual­idade social. Não se importa de ser minoritári­a; só quer afirmar-se. Aparecer. Esta suposta “ideologia” é apenas uma forma de chamar a atenção.

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