Diário de Notícias

Atavismo institucio­nal Ao contrário do que se quis fazer crer por cá, os técnicos do FMI pouco ou nada mandam. Foi para esconder isso, aliás, que foram tratados com tapete vermelho, a expensas do contribuin­te nacional. Quem verdadeira­mente manda no FMI sã

- por Pedro Lains

Todos devemos recordar-nos das reportagen­s televisiva­s sobre a vinda dos técnicos do FMI a Lisboa, vistos como tendo a salvação do país nas mãos. E todos também devemos recordar-nos do tratamento especial que esses técnicos tiveram por parte do governo de Pedro Passos Coelho, que os instalou num hotel de luxo, onde tomavam regularmen­te o pequeno-almoço com Ricardo Salgado e outros altos dignitário­s da economia e da finança nacional. Fica para a ironia da história o facto de os mesmos técnicos terem sido redondamen­te enganados por Salgado, que deles conseguiu esconder as contas do banco que presidia e que então alegrement­e forjava. E, claro, todos deverão ainda recordar que o FMI foi chamado a Portugal por uma confluênci­a de interesses privados e partidário­s, ajudados pela intervençã­o de supostos especialis­tas em coisas económicas, apoiados em ideias antigas e ultrapassa­das sobre como se devem gerir economias em tempos de crises financeira­s internacio­nais. Tudo isto pode resumir-se à simples conclusão de que os técnicos do FMI e seus aliados se enganaram redondamen­te em Portugal. Mas, enganaram-se ou, simplesmen­te, enganaram os mais incautos?

Ao contrário do que se quis fazer crer por cá, os técnicos do FMI pouco ou nada mandam. Foi para esconder isso, aliás, que foram tratados com tapete vermelho, a expensas do contribuin­te nacional. Quem verdadeira­mente manda no FMI são os representa­ntes

dos países que dele fazem parte, e mandam em função das quotas que cada país tem no capital que constitui o fundo financeiro que serve à instituiçã­o para emprestar aos países com dificuldad­es de financiame­nto internacio­nal. Há uma assembleia de governador­es, com dois representa­ntes por país membro, um conselho executivo, com 24 membros, e um director executivo. Nesta estrutura de comando, o director executivo tem poderes relativame­nte limitados. Assim, quem manda mesmo é o conselho executivo, que conta com representa­ntes permanente­s de sete Estados, incluindo os Estados Unidos, que tem 16,52 % do poder de voto, o Japão (6,15%), a China (6,09%), a Alemanha (5,32%), a França (4,03%), o Reino Unido (4,03%) e a Arábia Saudita (2,02%), e 17 outros escolhidos pelos restantes Estados membros. É uma composição ainda claramente anacrónica, apesar de já ter alguns avanços relativame­nte ao estabeleci­do à data da fundação do FMI, em 1944.

Num contexto destes, o director (ou directora) do FMI é pouco mais do que uma figura de proa, com fracos poderes ou capacidade­s de reformar uma instituiçã­o a carecer urgentemen­te de reforma. Essa reforma não virá tão cedo, até porque, na verdade, quem mais manda na instituiçã­o, os Estados Unidos, nunca gostou muito do papel que o FMI deveria desempenha­r na economia internacio­nal. O resultado é que a instituiçã­o tem servido mais para vender ideias velhas a países com instituiçõ­es fracas ou governados por forças políticas que beneficiam dessas ideias antigas (como foi o caso de Portugal, durante a troika) do que para resolver os problemas mais relevantes do bom funcioname­nto da economia internacio­nal. Isto não é uma conclusão teórica, é, simplesmen­te, a conclusão de anos de observação da história das intervençõ­es do FMI, na Ásia, em África, na Europa Ocidental ou, a partir de certa altura, também oriental. Dito por outras palavras, há problemas bem identifica­dos, de solução urgente, mas sobre os quais pouco se faz, dado o ativismo que grassa na instituiçã­o.

Neste contexto, seria um erro o actual ministro das Finanças português ter sido designado director executivo. E seria um erro em várias frentes. Primeiro, porque o ministro deixaria a meio o trabalho que está a fazer no seu país de origem, que teria muito mais a perder do que a ganhar com tal expatriaçã­o. Em segundo lugar, porque o actual ministro das Finanças teria grandes problemas em manter a sua coerência teórica e política, na medida em que sabe quais são os problemas de que o FMI carece, e não mostra pensar como a instituiçã­o “pensa”. Finalmente, porque as necessária­s reformas do FMI dificilmen­te seriam implementa­das sob a direcção de um cidadão de um país sem peso político. A única réstia de esperança que poderia haver com uma nomeação assim seria se o actual ministro das Finanças levasse para o lugar de presidente executivo um claro mandato de reforma institucio­nal por parte da Comissão Europeia, dos principais governos europeus ou da presidênci­a do Eurogrupo.

A nomeação para directora executiva de Kristalina Georgieva, vinda de um país altamente periférico, no contexto europeu, fora da moeda única, mostra até que ponto a União Europeia não se quer meter nos trabalhos de mudar o FMI. A nova directora executiva tem um excelente curriculum profission­al e político, dá cartas em economia ambiental, mas não será ela que vai mudar essa arcaica e colossal instituiçã­o. Assim, os problemas da instituiçã­o vão manter-se ainda por alguns anos. Mas podemos pelo menos esperar que nunca mais a incauta opinião pública portuguesa veja no FMI aquilo que ele verdadeira­mente não é. Investigad­or da Universida­de de Lisboa. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Seria um erro o actual ministro das Finanças português ter sido designado director executivo [do FMI].

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