Malcolm X e um incidente racista que mostra uma Rússia menos violenta
Brasileiro foi do Barcelona para a Rússia e as boas-vindas traduziram-se numa pequena tarja racista, mas ambígua, de uma minoritária franja de adeptos do Zenit. Os radicais estão a aburguesar-se ou a ser corridos do futebol russo.
Desde os motins em Marselha aquando do Rússia-Inglaterra do Euro 2016, despachados com a deportação de 40 pessoas, as autoridades russas começaram a desligar a tomada aos perigosos líderes dos violentos grupos de adeptos da seleção e dos clubes. Um insulto racista ainda é um insulto racista – mas aparecer três anos depois uma tarja reduzida no tamanho, na força da mensagem (ambígua) e no apoio (removida rapidamente pela meia dúzia de instigadores entre 54 mil espectadores) é uma boa notícia para uma Rússia em que ainda resistem movimentos de extrema-direita entre as claques, como a que subtilmente insultou um avançado brasileiro negro do Zenit de São Petersburgo. E é icónico que tenha acontecido com este jogador, batizado em homenagem a Malcolm X.
Há uma semana, arrancou a Liga russa, bem menos ativa no último ano no campo da virulenta luta contra tudo o que não esteja no parâmetro “branco e heterossexual”. E o tema da discriminação racial voltou em força. Mais na força de contestação ao ataque do que na força do ataque. Sinais de um tempo em que o hooliganismo russo perdeu território, como se queixava há pouco tempo um líder da temível Landskrona, a claque cujo nome alude a um ato militar (Landscrona é mais comum na grafia portuguesa e significa “coroa da Terra”, aludindo à destruição de uma fortificação sueca por militares russos em 1301).
“Uma das novas tendências no desenvolvimento do fanatismo, e que realmente me irritou, é a ligação às autoridades”, confessava Ivan Nike, pseudónimo de um antigo líder da maior claque do Zenit. “A segunda tendência desagradável é uma ligação mais próxima com o clube. Uma coisa é quando o clube está sozinho, os adeptos estão sozinhos, há uma distância entre um e outros. Agora, os adeptos estão a ser financiados pelo clube. Acho que toda a gente sabe que o amor se chama dinheiro. Antes, todos nos rimos do Lokomotiv, quando começaram a fazer tarjas para obter dinheiro do clube, mas agora isso acontece em todos os movimentos”, disse Ivan ao site fanstyle.ru, ligado aos movimentos ultras do futebol russo.
A FARE Network, organização não governamental europeia de combate à discriminação e que segue o fenómeno russo há muitos anos, está otimista. “A federação começou a tomar medidas mais pesadas contra comportamentos racistas e homofóbicos. Não diria que o problema desapareceu, mas está muito mais controlado”, confessa ao DN o diretor executivo Piara Powar. E explica: “Seis meses antes do Mundial 2018 [organizado pela Rússia com grande sucesso], governo, polícia e FSB [sucessor do KGB] começaram a ser muito claros com os líderes da extrema-direita – e há muitos: ou calam-se ou vão para a prisão. E isso resultou.”
Piara Powar, no entanto, sabe que “o manifesto da Landskrona é um indicador de que há problemas nos grupos de fãs”. Referia-se a uma declaração da claque, publicada em 2011, contra a inclusão de jogadores negros, mas o mesmo aplica-se ao comunicado da Landskrona depois de terem exibido a lacónica faixa no sábado passado (curiosamente, frente ao Krasnodar, adversário do FC Porto na pré-eliminatória de acesso à fase de grupos da Champions, que os dragões bateram fora, por 1-0, na quarta-feira): “Obrigado à direção por se manter leal às nossas tradições.” Supostamente, “tradições” de não serem contratados negros por um clube que só em 1991 pôde respirar fora do jugo soviético, portanto, há menos de 30 anos. E que já teve mais do que um plantel de negros ao longo dos últimos dez anos. Só nesta época contratou três por 65 milhões de euros: Malcom (40 milhões, Barcelona), Douglas Santos (12 milhões) e Wilmar Barrios (15 milhões). E na lista das contratações mais caras (desde 2010 e desde sempre) figuram ainda Hulk eWitsel (dividem o topo com Malcom, todos custaram 40 milhões de euros), ou Bruno Alves (22 milhões) e Salomón Rondón (18 milhões).
Prossegue Powar: “Comparado com o passado, foi uma pequena tarja, envolvendo poucas pessoas e retirada rapidamente, com uma mensagem que torna mais difícil provar a intenção. Mas toda a gente sabe o que queriam dizer.”
“Olhar para o percurso de Alexander Shprygin dá-nos um enquadramento da evolução da luta antidiscriminação na Rússia. Ele era o líder da claque da seleção, a União dos Adeptos Russos, e foi um dos 40 extraditados no Euro 2016. Dez meses depois, foi-lhe dito pela federação e pelo Estado que não pertencia mais ao movimento do futebol. Posteriormente, quando estava a dar uma entrevista, o seu carro explodiu”, partilha o diretor executivo da FARE. Ou seja, num ambiente de grande tensão política, militar e social, a maioria dos adeptos violentos aburguesou-se ou foi corrida pelo regime de Vladimir Putin. A bem ou a mal.
Comportamentos racistas e homofóbicos não desapareceram do futebol russo, mas estão hoje muito mais controlados, diz especialista.