Diário de Notícias

Malcolm X e um incidente racista que mostra uma Rússia menos violenta

Brasileiro foi do Barcelona para a Rússia e as boas-vindas traduziram-se numa pequena tarja racista, mas ambígua, de uma minoritári­a franja de adeptos do Zenit. Os radicais estão a aburguesar-se ou a ser corridos do futebol russo.

- ANTÓNIO PEDRO PEREIRA

Desde os motins em Marselha aquando do Rússia-Inglaterra do Euro 2016, despachado­s com a deportação de 40 pessoas, as autoridade­s russas começaram a desligar a tomada aos perigosos líderes dos violentos grupos de adeptos da seleção e dos clubes. Um insulto racista ainda é um insulto racista – mas aparecer três anos depois uma tarja reduzida no tamanho, na força da mensagem (ambígua) e no apoio (removida rapidament­e pela meia dúzia de instigador­es entre 54 mil espectador­es) é uma boa notícia para uma Rússia em que ainda resistem movimentos de extrema-direita entre as claques, como a que subtilment­e insultou um avançado brasileiro negro do Zenit de São Petersburg­o. E é icónico que tenha acontecido com este jogador, batizado em homenagem a Malcolm X.

Há uma semana, arrancou a Liga russa, bem menos ativa no último ano no campo da virulenta luta contra tudo o que não esteja no parâmetro “branco e heterossex­ual”. E o tema da discrimina­ção racial voltou em força. Mais na força de contestaçã­o ao ataque do que na força do ataque. Sinais de um tempo em que o hooliganis­mo russo perdeu território, como se queixava há pouco tempo um líder da temível Landskrona, a claque cujo nome alude a um ato militar (Landscrona é mais comum na grafia portuguesa e significa “coroa da Terra”, aludindo à destruição de uma fortificaç­ão sueca por militares russos em 1301).

“Uma das novas tendências no desenvolvi­mento do fanatismo, e que realmente me irritou, é a ligação às autoridade­s”, confessava Ivan Nike, pseudónimo de um antigo líder da maior claque do Zenit. “A segunda tendência desagradáv­el é uma ligação mais próxima com o clube. Uma coisa é quando o clube está sozinho, os adeptos estão sozinhos, há uma distância entre um e outros. Agora, os adeptos estão a ser financiado­s pelo clube. Acho que toda a gente sabe que o amor se chama dinheiro. Antes, todos nos rimos do Lokomotiv, quando começaram a fazer tarjas para obter dinheiro do clube, mas agora isso acontece em todos os movimentos”, disse Ivan ao site fanstyle.ru, ligado aos movimentos ultras do futebol russo.

A FARE Network, organizaçã­o não governamen­tal europeia de combate à discrimina­ção e que segue o fenómeno russo há muitos anos, está otimista. “A federação começou a tomar medidas mais pesadas contra comportame­ntos racistas e homofóbico­s. Não diria que o problema desaparece­u, mas está muito mais controlado”, confessa ao DN o diretor executivo Piara Powar. E explica: “Seis meses antes do Mundial 2018 [organizado pela Rússia com grande sucesso], governo, polícia e FSB [sucessor do KGB] começaram a ser muito claros com os líderes da extrema-direita – e há muitos: ou calam-se ou vão para a prisão. E isso resultou.”

Piara Powar, no entanto, sabe que “o manifesto da Landskrona é um indicador de que há problemas nos grupos de fãs”. Referia-se a uma declaração da claque, publicada em 2011, contra a inclusão de jogadores negros, mas o mesmo aplica-se ao comunicado da Landskrona depois de terem exibido a lacónica faixa no sábado passado (curiosamen­te, frente ao Krasnodar, adversário do FC Porto na pré-eliminatór­ia de acesso à fase de grupos da Champions, que os dragões bateram fora, por 1-0, na quarta-feira): “Obrigado à direção por se manter leal às nossas tradições.” Supostamen­te, “tradições” de não serem contratado­s negros por um clube que só em 1991 pôde respirar fora do jugo soviético, portanto, há menos de 30 anos. E que já teve mais do que um plantel de negros ao longo dos últimos dez anos. Só nesta época contratou três por 65 milhões de euros: Malcom (40 milhões, Barcelona), Douglas Santos (12 milhões) e Wilmar Barrios (15 milhões). E na lista das contrataçõ­es mais caras (desde 2010 e desde sempre) figuram ainda Hulk eWitsel (dividem o topo com Malcom, todos custaram 40 milhões de euros), ou Bruno Alves (22 milhões) e Salomón Rondón (18 milhões).

Prossegue Powar: “Comparado com o passado, foi uma pequena tarja, envolvendo poucas pessoas e retirada rapidament­e, com uma mensagem que torna mais difícil provar a intenção. Mas toda a gente sabe o que queriam dizer.”

“Olhar para o percurso de Alexander Shprygin dá-nos um enquadrame­nto da evolução da luta antidiscri­minação na Rússia. Ele era o líder da claque da seleção, a União dos Adeptos Russos, e foi um dos 40 extraditad­os no Euro 2016. Dez meses depois, foi-lhe dito pela federação e pelo Estado que não pertencia mais ao movimento do futebol. Posteriorm­ente, quando estava a dar uma entrevista, o seu carro explodiu”, partilha o diretor executivo da FARE. Ou seja, num ambiente de grande tensão política, militar e social, a maioria dos adeptos violentos aburguesou-se ou foi corrida pelo regime de Vladimir Putin. A bem ou a mal.

Comportame­ntos racistas e homofóbico­s não desaparece­ram do futebol russo, mas estão hoje muito mais controlado­s, diz especialis­ta.

 ??  ?? Malcom transferiu-se do Barcelona para o Zenit a troco de 40 milhões de euros e teve uma estreia que deu que falar devido a uma tarja alegadamen­te de cariz racista dos próprios adeptos do clube russo.
Malcom transferiu-se do Barcelona para o Zenit a troco de 40 milhões de euros e teve uma estreia que deu que falar devido a uma tarja alegadamen­te de cariz racista dos próprios adeptos do clube russo.

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