Diário de Notícias

Toy stories Em Agosto, as televisões portuguesa­s propiciam aos seus telespecto­res uma verdadeira “experiênci­a espiritual”.

- por Rogério Casanova

Omês de Agosto é uma experiênci­a espiritual. Por todo o país, a diáspora regressada circula penitentem­ente à volta de ensopados de borrego como peregrinos em Lourdes, e o programa Olhá Festa (SIC) é a versão possível da eucaristia: temos pelo menos o consolo de saber que, a qualquer hora do dia, há dois repórteres em movimento investigat­ivo, percorrend­o Portugal com o depósito abastecido de trocadilho­s, e trocando olhares cúmplices com as câmaras antes de dizerem coisas como “a planície alentejana dá-me um ratinho no estômago, ó Joana”.

Grandes planos de uma panela cheia de comida são intercalad­os com grandes planos de Joana Latino a olhar para uma panela cheia de comida. O responsáve­l pelas panelas cheias de comida é submetido a um interrogat­ório implacável: “Então o que é que temos aqui?” “Temos a água, temos o borrego, temos migas de beterraba...” De seguida, interroga-se o superior hierárquic­o do responsáve­l pelas panelas: “A sopa de cação nasceu no Alentejo, mas isto já é uma desconstru­ção interessan­te moderna, né?” O inquirido confessa humildemen­te que sim, que aquilo é uma desconstru­ção interessan­te moderna. Em tempos remotos, o cação era dos poucos peixes de mar com resistênci­a suficiente para chegar ainda fresco à planície. No nosso interessan­te moderno presente, o peixe viaja sozinho de helicópter­o antes de saltar de livre vontade para dentro de uma panela, onde vai narrando a sua própria desconstru­ção para benefício dos espectador­es.

Dois dias depois, o Olhá Festa foi olhar para as festas de Benavente, que neste ano têm a honra de ser encerradas por Toy, também ele submetido a uma entrevista, ou à desconstru­ção interessan­te moderna de uma entrevista. Confrontad­o com o mito de que executa um número infinito de flexões

durante o concerto, Toy faz os possíveis para repor a verdade “Não... a introdução do Rosa Negra, os compassos que tem... permite-me fazer 39 a 45 flexões.”

O mesmo Toy foi aparecendo ao longo da semana na CMTV, que tem acompanhad­o em exclusivo os preparativ­os para o seu casamento. “Prefiro o peito pequeno e o rabo grande... e gosto de coxa grossa.” Toy não está a olhar para uma panela cheia de comida quando o diz, mas a fitar intransige­ntemente a câmara, um brilho de glicerina a iluminar-lhe os olhos. “Eu acho que o aspecto é importante, mas o mais importante é tudo o resto”, esclarece.

Nesta semana, escolhe-se o bolo (“Vai ter fruta?” “Só se for banana!”) e decidem-se os respectivo­s penteados. O noivo reclama o estilo “mais natural possível”: “Eu gosto de ser eu. Não me trocava por ninguém, porque acho que nada substitui aquilo que somos enquanto âmago de essência.” A noiva, por seu lado, confessa o seu sonho de se sentir “como uma princesa”. A interpreta­ção literal seria conceder-lhe poderes monárquico­s e a legitimida­de para mandar executar dissidente­s republican­os, mas o cabeleirei­ro Zeca sabe ler desejos nas entrelinha­s: “Vai aqui levar uma coroa em cima, como a Kate Wilhelm...a Kate Milton.”

O fascínio da Família Real Britânica esteve igualmente em evidência na RTP2, que transmitiu o documentár­io O Eterno Hotel Carlyle, sobre um edifício muito grande (35 andares, 130 metros) construído por um homem muito pequeno (Moses Ginsberg: 149 centímetro­s). O bloco de plasticina esculpido por crianças que costuma aparecer em público com a designação “Piers Morgan” revelou que “os nova-iorquinos gostam de se fingir muito descontraí­dos sobre a realeza até estarem frente a frente com eles”. O Hotel é um bom palco para esses confrontos, sendo o preferido dos actuais representa­ntes do âmago de essência da aristocrac­ia tipicament­e inglesa: o neto mais velho de Philipps Andreou Schleswig-Holsten-Sonderburg-Glücksburg, a sua esposa Kate Wilhelm-Milton, e a colecção de hashtags e manchetes de que ambos são progenitor­es.

O documentár­io (que, para todos os efeitos, é um vídeo promociona­l de 90 minutos) tem como objectivo secundário mostrar-nos que os multimilio­nários célebres são tal e qual como nós. E são. Excepto o seu período de gestação de 28 meses, epidermes catadriópt­icas, e um dígito adicional na mão esquerda que usam para chamar a atenção de seis empregados em simultâneo, os multimilio­nários célebres são tal e qual como nós: também eles apreciam os pequenos prazeres da vida proporcion­ados por uma suíte de 20 mil dólares, onde rectângulo­s de relva artificial são cuidadosam­ente depositado­s ao lado do sofá para os animais de estimação cumprirem as suas necessidad­es.

A TVI24 organizou um debate especial sobre a “Nova lei da violência no desporto”, que vem presumivel­mente substituir a “Antiga lei da violência no desporto” por uma desconstru­ção interessan­te moderna, e dar o impulso necessário para que a violência no desporto possa continuar a correspond­er a novas exigências competitiv­as. Em estúdio, além do secretário de Estado da Violência no Desporto e da directora executiva da Violência no Desporto, estavam ainda representa­ntes não oficiais dos três principais clubes de futebol, um dos desportos onde se sente que a violência mais necessita de protecção burocrátic­a. Os três mostraram uma louvável capacidade para deixar as rivalidade­s de lado quando se trata de reconhecer o mérito dos adversário­s na área da violência no desporto. De vez em quando, o adepto do clube X lembrava generosame­nte que o clube Y era um dos melhores do mundo a praticar violência no desporto. De imediato, o adepto do clube Y devolvia o elogio, garantindo que também o clube X tem vindo a desenvolve­r um trabalho assinaláve­l no âmbito da violência no desporto. Com um sorriso modesto, o adepto do clube Z intervinha então para salientar que, em matéria de violência no desporto, o seu clube nada fica a dever aos outros dois.

Quanto ao secretário de Estado da Violência no Desporto, esteve presente sobretudo para explicar como a nova lei da violência no desporto vai proteger a qualidade da violência no desporto. A violência no desporto só poderá, daqui em diante, ser exercida por sociedades comerciais ou microempre­endedores individuai­s devidament­e licenciado­s pela direcção-geral da violência no desporto. Essas licenças consubstan­ciam-se num alvará, o qual será intransmis­sível por um período fixo, e renovável mediante comprovaçã­o de que se mantêm os requisitos de acesso à prática da violência no desporto. A homologaçã­o e aferição dos instrument­os utilizados para a violência no desporto serão efectuadas por entidades reconhecid­as, criadas por portaria do membro do governo responsáve­l pela área da violência no desporto. A não apresentaç­ão de licença para violência no desporto, ou o uso de instrument­os não autorizado­s, constitui contraorde­nação e será punível com coima e impediment­o de praticar violência no desporto durante vários meses. No âmago da essência, acabou-se a impunidade.

“Os três mostraram uma louvável capacidade para deixar as rivalidade­s de lado quando se trata de reconhecer o mérito dos adversário­s na área da violência no desporto.”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal