Toy stories Em Agosto, as televisões portuguesas propiciam aos seus telespectores uma verdadeira “experiência espiritual”.
Omês de Agosto é uma experiência espiritual. Por todo o país, a diáspora regressada circula penitentemente à volta de ensopados de borrego como peregrinos em Lourdes, e o programa Olhá Festa (SIC) é a versão possível da eucaristia: temos pelo menos o consolo de saber que, a qualquer hora do dia, há dois repórteres em movimento investigativo, percorrendo Portugal com o depósito abastecido de trocadilhos, e trocando olhares cúmplices com as câmaras antes de dizerem coisas como “a planície alentejana dá-me um ratinho no estômago, ó Joana”.
Grandes planos de uma panela cheia de comida são intercalados com grandes planos de Joana Latino a olhar para uma panela cheia de comida. O responsável pelas panelas cheias de comida é submetido a um interrogatório implacável: “Então o que é que temos aqui?” “Temos a água, temos o borrego, temos migas de beterraba...” De seguida, interroga-se o superior hierárquico do responsável pelas panelas: “A sopa de cação nasceu no Alentejo, mas isto já é uma desconstrução interessante moderna, né?” O inquirido confessa humildemente que sim, que aquilo é uma desconstrução interessante moderna. Em tempos remotos, o cação era dos poucos peixes de mar com resistência suficiente para chegar ainda fresco à planície. No nosso interessante moderno presente, o peixe viaja sozinho de helicóptero antes de saltar de livre vontade para dentro de uma panela, onde vai narrando a sua própria desconstrução para benefício dos espectadores.
Dois dias depois, o Olhá Festa foi olhar para as festas de Benavente, que neste ano têm a honra de ser encerradas por Toy, também ele submetido a uma entrevista, ou à desconstrução interessante moderna de uma entrevista. Confrontado com o mito de que executa um número infinito de flexões
durante o concerto, Toy faz os possíveis para repor a verdade “Não... a introdução do Rosa Negra, os compassos que tem... permite-me fazer 39 a 45 flexões.”
O mesmo Toy foi aparecendo ao longo da semana na CMTV, que tem acompanhado em exclusivo os preparativos para o seu casamento. “Prefiro o peito pequeno e o rabo grande... e gosto de coxa grossa.” Toy não está a olhar para uma panela cheia de comida quando o diz, mas a fitar intransigentemente a câmara, um brilho de glicerina a iluminar-lhe os olhos. “Eu acho que o aspecto é importante, mas o mais importante é tudo o resto”, esclarece.
Nesta semana, escolhe-se o bolo (“Vai ter fruta?” “Só se for banana!”) e decidem-se os respectivos penteados. O noivo reclama o estilo “mais natural possível”: “Eu gosto de ser eu. Não me trocava por ninguém, porque acho que nada substitui aquilo que somos enquanto âmago de essência.” A noiva, por seu lado, confessa o seu sonho de se sentir “como uma princesa”. A interpretação literal seria conceder-lhe poderes monárquicos e a legitimidade para mandar executar dissidentes republicanos, mas o cabeleireiro Zeca sabe ler desejos nas entrelinhas: “Vai aqui levar uma coroa em cima, como a Kate Wilhelm...a Kate Milton.”
O fascínio da Família Real Britânica esteve igualmente em evidência na RTP2, que transmitiu o documentário O Eterno Hotel Carlyle, sobre um edifício muito grande (35 andares, 130 metros) construído por um homem muito pequeno (Moses Ginsberg: 149 centímetros). O bloco de plasticina esculpido por crianças que costuma aparecer em público com a designação “Piers Morgan” revelou que “os nova-iorquinos gostam de se fingir muito descontraídos sobre a realeza até estarem frente a frente com eles”. O Hotel é um bom palco para esses confrontos, sendo o preferido dos actuais representantes do âmago de essência da aristocracia tipicamente inglesa: o neto mais velho de Philipps Andreou Schleswig-Holsten-Sonderburg-Glücksburg, a sua esposa Kate Wilhelm-Milton, e a colecção de hashtags e manchetes de que ambos são progenitores.
O documentário (que, para todos os efeitos, é um vídeo promocional de 90 minutos) tem como objectivo secundário mostrar-nos que os multimilionários célebres são tal e qual como nós. E são. Excepto o seu período de gestação de 28 meses, epidermes catadriópticas, e um dígito adicional na mão esquerda que usam para chamar a atenção de seis empregados em simultâneo, os multimilionários célebres são tal e qual como nós: também eles apreciam os pequenos prazeres da vida proporcionados por uma suíte de 20 mil dólares, onde rectângulos de relva artificial são cuidadosamente depositados ao lado do sofá para os animais de estimação cumprirem as suas necessidades.
A TVI24 organizou um debate especial sobre a “Nova lei da violência no desporto”, que vem presumivelmente substituir a “Antiga lei da violência no desporto” por uma desconstrução interessante moderna, e dar o impulso necessário para que a violência no desporto possa continuar a corresponder a novas exigências competitivas. Em estúdio, além do secretário de Estado da Violência no Desporto e da directora executiva da Violência no Desporto, estavam ainda representantes não oficiais dos três principais clubes de futebol, um dos desportos onde se sente que a violência mais necessita de protecção burocrática. Os três mostraram uma louvável capacidade para deixar as rivalidades de lado quando se trata de reconhecer o mérito dos adversários na área da violência no desporto. De vez em quando, o adepto do clube X lembrava generosamente que o clube Y era um dos melhores do mundo a praticar violência no desporto. De imediato, o adepto do clube Y devolvia o elogio, garantindo que também o clube X tem vindo a desenvolver um trabalho assinalável no âmbito da violência no desporto. Com um sorriso modesto, o adepto do clube Z intervinha então para salientar que, em matéria de violência no desporto, o seu clube nada fica a dever aos outros dois.
Quanto ao secretário de Estado da Violência no Desporto, esteve presente sobretudo para explicar como a nova lei da violência no desporto vai proteger a qualidade da violência no desporto. A violência no desporto só poderá, daqui em diante, ser exercida por sociedades comerciais ou microempreendedores individuais devidamente licenciados pela direcção-geral da violência no desporto. Essas licenças consubstanciam-se num alvará, o qual será intransmissível por um período fixo, e renovável mediante comprovação de que se mantêm os requisitos de acesso à prática da violência no desporto. A homologação e aferição dos instrumentos utilizados para a violência no desporto serão efectuadas por entidades reconhecidas, criadas por portaria do membro do governo responsável pela área da violência no desporto. A não apresentação de licença para violência no desporto, ou o uso de instrumentos não autorizados, constitui contraordenação e será punível com coima e impedimento de praticar violência no desporto durante vários meses. No âmago da essência, acabou-se a impunidade.
“Os três mostraram uma louvável capacidade para deixar as rivalidades de lado quando se trata de reconhecer o mérito dos adversários na área da violência no desporto.”