Diário de Notícias

João Gilberto exigia a perfeição em sua arte. Mas não pôde impedir que a vida real fugisse terrivelme­nte ao seu controle.

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Todas as vezes em que se viu diante de um microfone, João Gilberto lutou para exercer o controle. Fez isso pelo menos desde o dia 10 de julho de 1958, quando gravou o samba Chega de Saudade, no antigo estúdio da Odeon, na Avenida Rio Branco, no Rio. Já naquele dia mostrou a que vinha: exigiu dois microfones – um para sua voz, outro para o violão. Não era uma prática comum, mas os técnicos o atenderam. O resultado, todos sabem. Ali nascia um novo som, um novo ritmo, um novo mundo – a bossa-nova.

“Quando João Gilberto se acompanha, o violão é ele. Quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele”, escreveu Tom Jobim na época. E foi assim desde então. Em todos os seus discos, João Gilberto foi o verdadeiro autor dos arranjos, mesmo que escritos por outros. Os encarregad­os dos trabalhos de pós-produção (mixagem, corte, prensagem) também foram apresentad­os a um novo grau de

perfeccion­ismo – o dele. O mesmo que exigia de si mesmo.

Ele era o senhor de sua arte. Nos concertos, João Gilberto discutia em cena com o pessoal do som (os microfones nunca pareciam estar perfeitos), com o encarregad­o do ar condiciona­do (letal para a madeira e para as cordas do violão) e com algumas pessoas na plateia (que insistiam em falar enquanto ele cantava). É uma prerrogati­va do cantor, querer ser escutado ao cantar. Quem não quisesse escutar não era obrigado a ir ao seu show. Durante 50 anos, só gravou quando quis, onde quis, com quem quis. E, principalm­ente, o que quis.

Mesmo em seus primeiros álbuns, nos quais lançou triunfalme­nte a bossa-nova com suas gravações dos sambas modernos de Tom Jobim, Carlos Lyra e Roberto Menescal, nunca deixou de incluir o que se poderia chamar, na época, de clássicos da bossa velha – sambas antigos de Ary Barroso, Dorival Caymmi, Geraldo Pereira. Nos anos seguintes, quando parecia rompido com Tom – durante décadas, mantiveram uma frieza pessoal recíproca –, nunca deixou de gravar as maravilhas que Jobim continuava produzindo: Wave, Lígia, Águas de Março. E, em vez de adaptar para seu estilo os sucessos dos compositor­es do momento – nunca gravou, por exemplo, nada de seu ex-cunhado Chico Buarque –, especializ­ou-se em ressuscita­r fabulosos sambistas do passado, como Geraldo Jacques (Tim tim por tim tim e Adeus, América), Janet de Almeida (Pra Que Discutir com Madame, Eu Quero Um Samba e Eu Sambo mesmo) e seu próprio mestre Lúcio Alves (De Conversa em Conversa), não por acaso todos tendo como parceiro o veterano Haroldo Barbosa, o letrista que ele mais gravou – sete sambas – depois de Vinicius, com oito. Ele era assim: ingovernáv­el.

Enfim, em sua obsessão pelo controle, João Gilberto tinha uma única ambição: fazer parar o mundo para ele exercer sua arte. E, diante do microfone, sempre conseguiu.

Fora do palco foi o contrário. Embora parecesse só fazer o que quisesse, nunca teve controle sobre sua vida. Habituou-se a delegá-la a outros, que podiam ser suas mulheres (para cuidar de seus compromiss­os, negócios e finanças) ou amigos (dos quais dependia para tudo, desde agendar um tratamento dentário, uma troca do pneu de seu carro – que raramente saía da garagem – ou afinar seu violão). Morou no Rio, em Nova Iorque, na Cidade do México, de novo em Nova Iorque e, de novo e para sempre, no Rio, e nunca teve casa própria em nenhuma dessas cidades. Sempre viveu em apartament­os alugados e nunca alugou um pessoalmen­te – sempre teve alguém que fizesse isso por ele e cuidasse dos pagamentos mensais.

E não lhe faltavam pessoas que, por adoração à sua arte, dedicaram suas próprias vidas a cuidar dele, fazer-lhe as vontades, protegê-lo do mundo e justificar todas as suas excentrici­dades. Eram as únicas a ter acesso pessoal a ele, e a qualquer momento. Conheci três ou quatro dessas pessoas – o dia-a-dia delas era o de João Gilberto; suas opiniões, as de João Gilberto; suas vidas, a de João Gilberto. Em troca, ele podia ser o mais carinhoso, atento e generoso dos amigos. Uma senhora que o acolheu como mãe nos anos 1950, quando ele passou algum tempo no sul do país, numa fase complicada de sua juventude, nunca foi esquecida – pelas décadas seguintes, enquanto ela viveu, ele lhe mandou passagens de avião e hospedagem em hotéis para seus concertos fora do Brasil.

João Gilberto fez tudo para que o mundo e a vida real se mantivesse­m à distância de seu apartament­o, de seu quarto e de seu pijama, com o qual passava o dia, o mês e o ano inteiro trancado em casa. Mas a vida escreve os seus próprios arranjos e, às vezes, desafina. A de João Gilberto, infelizmen­te, desafinou feio.

Morto há um mês, seu espólio está sendo disputado pelos três filhos – de três mulheres diferentes –, numa luta em que se têm usado todos os recursos judiciais, golpes baixos e ofensas pessoais, pela imprensa ou pelas redes sociais. A parte talvez mais importante de seu insuperáve­l legado musical – os três primeiros álbuns que gravou para a antiga Odeon, depois EMI, atualmente Universal, entre 1958 e 1961 – está em litígio há quase 30 anos, desde que ele alegou, a meu ver com razão, uso indevido e adulteraçã­o dessas gravações. E, por causa disso, esses discos – que são o Novo Testamento da música popular brasileira – não podem ser relançados legalmente, embora cópias adulterada­s circulem à larga pela Europa. Outra briga feia decorrente desse processo envolve uma disputa por direitos autorais não pagos e que ele cobrou da gravadora, no valor de milhões (de euros, dólares ou reais) e, agora, está nas mãos de um banco brasileiro, que se colocou ao seu lado. Para piorar, uma namorada que ele manteve por 30 anos, paralelame­nte a outros casos – e em cujos braços efetivamen­te morreu –, passou a exigir também seus direitos.

Como o mundo não parou para que ele fosse exclusivam­ente sua arte, João Gilberto pode ter feito bem em abandoná-lo e levar com ele sua perfeição.

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