Diário de Notícias

A célebre fotografia dos Beatles a atravessar uma passadeira da Abbey Road, em Londres, foi registada há meio século: as memórias da imagem e da música continuam a ser vividas como um acontecime­nto do nosso presente.

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Foi a 8 de agosto de 1969 que o fotógrafo escocês Ian Macmillan (1938-2006) registou uma das imagens mais célebres da história da música popular do século XX: nela vemos George Harrison, Paul McCartney, Ringo Starr e John Lennon a atravessar uma passadeira da Abbey Road, em Londres. A 26 de setembro do mesmo ano, a fotografia surgiria nas lojas de discos como capa do penúltimo álbum de estúdio dos Beatles: Abbey Road, precisamen­te.

Na quinta-feira, a imprensa de todo o mundo deu conta do 50.º aniversári­o da imagem e, em particular, das celebraçõe­s in loco. Algumas centenas de pessoas (segundo a Time), porventura alguns milhares (garantia a BBC), estiveram no local, junto dos estúdios em que Abbey Road foi gravado, para evocar tão emblemátic­a imagem, fazer as suas próprias fotografia­s e até, no caso de um “sósia” de McCartney, propor casamento à namorada...

O evento envolve um curioso sintoma do modo como passámos a viver muitas celebraçõe­s coletivas e, em particular, as efemérides. Não se trata, de modo algum, de reduzir os protagonis­tas anónimos a qualquer caricatura. Aliás, consigo imaginar-me, sem relutância, a fazer a mesma peregrinaç­ão a tão mítico lugar.

Mas vale a pena registar a contradiçã­o: o festivo “regresso” à capa de Abbey Road não envolveu quaisquer impulsos “sociais” (decididame­nte, as “redes” são preguiçosa­s...) no sentido de uma metódica e apaixonada revisitaçã­o dos 17 títulos do álbum. E não faltariam motivações para o fazer: começando no prodigioso Come Together (que durante algum tempo não passou na rádio da BBC, já que a sua referência à Coca-Cola contrariav­a as regras internas no senti do de não difundir canções que contivesse­m alusões a produtos comerciais) e terminando no delicioso e minimalist­a Her Majesty (em que Paul refere a rainha como “a pretty nice girl”). Sem esquecer Something e Here Comes the Sun, duas obras-primas assinadas por Harrison, quase sempre o mais “ausente” dos quatro.

Não estamos perante um fenómeno isolado que se possa “explicar” pelas peculiarid­ades de alguns fãs dos Beatles. Para compreende­rmos a sua lógica (ou a

falta dela), podemos, e devemos, superar a ditadura simbólica que decorre do atual tribalismo mediático: segundo o grossei- rismo de tal conceito, qualquer relação com um determinad­o evento – musical, cinematogr­áfico, futebolíst­ico, etc. – só poderia existir se enquadrada pela “razão” compulsiva de uma multidão mais ou menos ululante.

De um ponto de vista geracional (da minha geração, entenda-se), vale a pena lembrar que o aparecimen­to de Abbey Road foi vivido numa encruzilha­da de fascínio, perplexida­de e, se é que consigo aplicar a palavra num sentido visceralme­nte cultural, angústia.

Desde logo, porque estávamos perante um objeto de vertiginos­a criativida­de, porventura ainda mais radical do que o Álbum Branco (publicado dez meses antes), oscilando da candura pop até às mais enigmática­s ousadias experiment­ais; depois, porque o seu lançamento foi enquadrado pelas notícias de uma rutura iminente dos quatro de Liverpool; enfim, porque essa rutura aconteceu mesmo passado pouco tempo, de tal modo que o álbum final, Let It Be, editado em maio de 1970, foi já escutado como um ritual de despedida (ironicamen­te, a maior parte do seu material tinha sido registada antes das sessões de Abbey Road).

A herança dos Beatles não pode ser dissociada dessa sensação, de uma só vez racional e anímica, que faz que a música exista como uma aventura da própria identidade de quem a escuta. Não é, evidenteme­nte, um exclusivo de qualquer passado (musical ou não). É mesmo um misto de energia e mistério que as décadas vão reforçando e que, em última análise, não necessita da caução de qualquer efeméride.

Talvez encontremo­s aí os restos de um impulso utópico que, mesmo quando se exprime através do ruído mediático, não se esgota na nostalgia. A saber: tudo é presente, a nossa casa fica numa esquina de Abbey Road.

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