Diário de Notícias

Porque não há homens educadores de infância

Durante toda a vida lhes disseram que ser educador era “coisa de mulher”. Antes do 25 de Abril, a educação pré-escolar estava mesmo interdita a homens.

- CATARINA REIS

Durante toda a vida lhes disseram que ser educador era “coisa de mulher”. Antes do 25 de Abril, a educação pré-escolar estava interdita a homens.

Odestino estava escrito no nome, diz Diogo, palavra derivada do latim didacus, que significa “professor”. Mas foi apenas quando a professora Albertina, do 12.º ano, lhe lançou a questão que decidiu que queria seguir Educação. Mais especifica­mente, ser educador de infância, uma profissão maioritari­amente feminina. Os números não deixam mentir: de acordo com o relatório “Educação em números 2019”, da Direção-Geral de Estatístic­as da Educação e Ciência, Diogo Guerreiro, 40 anos, integra estes restantes 1%. Ao todo, são apenas 157, num universo de 16 065 educadores portuguese­s. Já em Beja é o único, garante.

“Diogo.” O nome é repetido vezes sem conta nas vozes das crianças que estão sob a alçada deste educador na Associação Escola Aberta, em Beja, uma instituiçã­o particular de solidaried­ade social. Encontramo-lo sentado no parque infantil exterior da escola, com os mais pequenos a trepar pela sua camisa ao xadrez e a brincar com a guitarra que carrega na mão. “Diogo, Diogo”, repefreque­ntar

tem. Homem e educador. E nada nesta conjugação parece ambíguo ou digno de discussão para as crianças. Aos olhos delas, ele é o professor e não uma ínfima parte das estatístic­as nacionais. Aqueles com quem é mais difícil de lidar são os adultos, explica. “Tive algumas touradas com mães, principalm­ente, embora a maioria confie porque me conhece há vários anos.” Já lá vão quase 16 de carreira. “Várias vezes disseram-me: ‘O Diogo não sabe o que faz.’ E isso acontece porque sou homem”, garante.

Um caminho solitário

Sabia exatamente ao que ia quando decidiu ingressar na atividade, embora só muito tarde tenha decidido o que queria fazer profission­almente. Passou a adolescênc­ia “perdido”, até ao dia em que a professora Albertina, do 12.º ano, o “encostou à parede” e disse que tinha de se orientar, escolher um futuro. “Propôs Educação, porque achava que eu tinha jeito para as crianças, já que tomava conta dos filhos dela”, conta. E a ideia não lhe pareceu estranha.

Por isso, viajou do Estoril, onde nasceu e cresceu, em direção a Beja, para se tornar estudante universitá­rio. Era o único homem a a licenciatu­ra de Educação de Infância, no Instituto Politécnic­o de Beja, distrito onde permaneceu até hoje.

“Só a partir dos anos 1970, quando começou a aparecer formação (pública) que tinha sido extinta, é que a possibilid­ade foi aberta aos homens”, lembra o presidente da Associação de Profission­ais de Educação de Infância (APEI). Luís Ribeiro é também ele formado em Educação de Infância, embora já não esteja a exercer diretament­e junto das crianças. Nem uma década após o início desta reforma, acabou o curso em Évora como “um dos três primeiros homens a saírem formados da área”.

Não tem dificuldad­es em enumerar as razões que estão na origem deste número tão residual. São poucos na profissão não só “pelo preconceit­o em torno de uma figura masculina cuidadora”, mas também porque “a mobilidade na rede educativa é escassa”, fazendo que entrem menos educadores, e ainda menos os que são homens. “Os que conseguem acabam por ingressar na rede privada ou solidária.”

É um caminho de desencanto­s fáceis, acrescenta o educador Diogo Guerreiro. Como formador num curso profission­al de

Educação de Infância, conta que dos poucos rapazes que chegaram às suas turmas, a maioria acabou mesmo por desistir devido à “pressão”. “A nossa sexualidad­e é posta em causa”, lamenta.

E nem os vários anos de experiênci­a podem descansar, principalm­ente, aqueles que são pais pela primeira vez. “O que se vai ouvindo fora destas paredes, das nossas cidades, e às vezes até do país, assusta-os.” Diogo sentiu-o imediatame­nte no início da sua carreira, em 2003, que coincidiu com o auge do processo Casa Pia. “Embora os pais das crianças não o dissessem em voz alta, senti que havia ali alguma cautela”, lembra.

O dirigente da APEI, Luís Ribeiro, acrescenta que, no seu tempo, “as mães perguntava­m a orientação sexual do educador para compreende­rem que tipo de relação teria com as crianças”.

Profissão interdita a homens

As estatístic­as mostram que a presença masculina numa profissão que se diz feminina tem oscilado ao longo dos anos . Entre 2004 e 2010, por exemplo, a taxa de feminidade variou entre os 96% e os 98% . E já lá vai o tempo em que os homens eram realmente um tabu entre os números – contavam-se zero, antes do 25 de Abril.

“Deus, pátria, família”, ditavam as lições de Salazar, onde à mulher cabia a figura de cuidadora e educadora dos menores. Os homens, pelo contrário, eram vistos meramente como trabalhado­res, o ganha-pão da casa, com um peso inferior na educação dos próprios filhos. Nos anos em que vigorou o Estado Novo, foi assim mesmo que se determinar­am os papéis. E é possível ir ainda mais longe na cronologia. Basta retroceder até à Pré-História, no tempo em que os humanos habitavam as cavernas. Também aqui o sexo feminino era visto como o cuidador, enquanto o homem ia caçar.

A história foi ditando os papéis, sempre estereotip­ados, e assim o futuro da educação em Portugal. Tornou-se estranho, até exótico, pensar numa figura masculina como educador. Por isso, antes da Revolução de Abril, era proibido um homem exercer esta profissão. Mesmo com a queda deste regime político, estas ideologias foram sobreviven­do aos anos seguintes, deixando partículas desse tempo nas páginas mais contemporâ­neas da história.

Depois de licenciado, enquanto entregava currículos, José Gonçalves, 30 anos, foi recusado numa instituiçã­o infantil como educador devido ao seu sexo. “Disseram-me logo que não aceitavam homens para o cargo”, conta o educador de infância de Vila Nova de Gaia. Foi a única vez que tal aconteceu, mas “mostra como a sociedade ainda pensa que o sexo masculino não pode ser o cuidador”.

Ele próprio ponderou: “Será que vou ser aceite no meio? Como é que a sociedade vai ver o meu papel como homem educador? Ainda por cima estarei a concorrer numa altura tão difícil para a educação”, recorda. Decidiu arriscar e descobrir sozinho a resposta.

Famílias a mudar, pais mais educadores

José lamenta o perfil estereotip­ado que tem resistido ao passar do tempo, mas é mais otimista: “A sociedade está a mudar.” Em grande parte, explica, devido às novas dinâmicas familiares. “Hoje, um pai está mais ou tão presente na educação de um filho comparativ­amente com a mãe. E isso faz que os casais e as crianças não considerem tão estranho um cenário em que o professor que os espera na escola é homem.”

As mentalidad­es são outras, é certo. Mas “é preciso não nos esquecermo­s de que continuamo­s a ser poucos”, acrescenta Diogo Guerreiro. Na perspetiva do educador, o trabalho deve ser feito em conjunto com as mães e as mulheres deste país, que “muitas vezes ainda escolhem não dar espaço aos homens para que a revolução aconteça”.

Diogo iniciou a carreira durante o auge do processo Casa Pia. “Embora não o dissessem, senti que havia mais cautela.” “Quando fui entregar o currículo àquela instituiçã­o, disseram-me logo que não aceitavam homens para o cargo.”

JOSÉ GONÇALVES

Educador de infância

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Educador de infância ativo e formado em Beja, Diogo Guerreiro (40 anos) conta que foi o único homem a ingressar na licenciatu­ra.
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