“Não sei porque contar a verdade às pessoas se tornou utopia. É o normal no jornalismo”
DAVID JIMÉNEZ. Escreveu um livro polémico, em Espanha, contando o seu ano infernal à frente do El Mundo. El Director conta a vida numa redação em crise, uma indústria em mudança, pressionada pelos poderes económicos e políticos.
David Jiménez é a sensação editorial em Espanha. Jornalista, escreveu um livro sobre o seu ano, terrível, como diretor do jornal El Mundo. O que conta, com toda a transparência, chocou a sociedade espanhola. Expôs a bolha que se formou entre o poder político, os interesses económicos e a aristocracia do jornalismo espanhol. As pressões de fora e de dentro, com uma administração habituada ao statu quo e preocupada com a sobrevivência do negócio. As atividades de jornalistas pouco consentâneas com os valores do jornalismo e as guerras de personalidades numa redação resistente à mudança do papel para o
online.
O livro chama-se simplesmente El Director e já vai na quinta edição. David Jiménez foi jornalista do El Mundo toda a vida, e na maior parte dela foi correspondente no estrangeiro, cobrindo guerras e desastres naturais, sobretudo na Ásia. Depois de ter sido bolseiro da Fundação Nieman, em Harvard, a administração da RCS – dona do El
Mundo – convidou-o para dirigir o jornal. Chegou à redação, como conta no livro, sem um único contacto de um político ou de um empresário na agenda. Mas essa independência, que achava benéfica, acabou por tramá-lo, conta. Apanhado em guerras políticas, numa Espanha em crise de polarização e com novos partidos, e problemas económicos, teve de batalhar pela independência do jornal que todos achavam dever escolher “um lado” e “defender os seus”. Encruzilhadas éticas de um mundo em mudança permanente como é o dos media. Foi diretor do El Mundo durante um ano. Quando descreve o que aconteceu, no seu livro, parece um inferno. E não deveria ter acontecido assim. O que é que correu tão mal? Bem, eu chego a diretor do El Mundo depois de quase 20 anos como correspondente no estrangeiro. Quando comecei era um jovem com 26 ou 27 anos e a imprensa em Espanha ainda vivia um boom, os jornais ganhavam muito dinheiro. Quando volto como diretor encontro a imprensa arruinada. As redações tinham despedido metade dos seus jornalistas. E o poder, tanto económico como político, percebeu a fragilidade da imprensa e aproveitou a situação difícil para controlar ainda mais os meios de comunicação. Não estava preparado para isso, não sabia que era assim? Depois de estar vinte anos como correspondente preocupado com a reportagem que ia fazer, e como enviá-la para o jornal, não tinha nenhuma experiência da gestão de uma redação nem de me mover nos gabinetes e nos corredores do poder. Não tinha essa experiência e creio que paguei por isso. O lugar de diretor do El Mundo em Espanha é muito poderoso, com muita influência, e temos de nos saber movimentar junto do poder. No primeiro dia telefona-nos o rei, o presidente do governo, todos os ministros e gran
“Quando as vendas do jornal caem 70%, passamos a depender de favores dos que devíamos vigiar. Tornamo-nos parte do sistema para sobreviver.”
des empresários. Toda a gente quer conhecer-nos, ser nosso amigo, ter influência. Eu tinha estado a cobrir guerras, revoluções, tsunamis... tinha vivido num mundo muito diferente. Não soube movimentar-me naquele mundo. Num momento com muitas dificuldades, em que a Espanha estava a viver uma grande mudança, em que surgiam novos partidos políticos como o Podemos e o Ciudadanos, e o establishment tinha medo de perder a sua posição. O que todos pediam quando ligavam ao diretor era que eu os ajudasse. E eu respondi-lhes que não, que ia fazer um jornal independente. Aí começou uma batalha para controlar o jornal. E quando veem que não o podem fazer, tentam eliminar-me como diretor. Mas se não tinha essa experiência, porque é que aceitou ser diretor? Porque achava que sem ter essa experiência era melhor, por ser mais independente? Entrei como estagiário no El Mundo e trabalhei 20 anos para o jornal, sentia um vínculo emocional. Aquilo para mim não era só um trabalho, era um sítio muito especial que me havia dado grandes oportunidades. Naquele momento pedem-me ajuda porque acreditam que eu seja a pessoa que os pode ajudar a sair da crise e seria impossível dizer-lhes que não. Apesar de saber que iria ser muito difícil, também pensava que tinha algo de importante para oferecer. Além de que me sentia livre para tomar decisões, não tinha compromissos nem dentro nem fora da redação. Numa parte do livro digo que não devia nenhum favor a ninguém e que ninguém me devia a mim. Pensei que isso era uma grande vantagem para fazer uma transformação radical no jornal.
E poderia ter sido? Sim, poderia ter sido. O que se passa é que notei que os proprietários do jornal não tinham nenhuma intenção de fazer um jornal diferente. O que queriam era trazer alguém de fora que não tivesse contactos com a política e com o mundo das empresas. Creio que eles pensaram que eu seria muito manejável, que poderiam fazer um pouco o que quisessem. Quando a própria empresa não quer fazer um jornal independente tudo se torna muito difícil. No livro diz que “o poder económico protegia o poder político, o poder político protegia o poder económico e a imprensa protegia o poder económico”. Mas no final, nos media é um problema económico ou não? O maior problema é o económico porque a imprensa não pode ser livre enquanto depende de favores de grandes empresas ou de uma licença de rádio ou de televisão que dá o governo, ou da publicidade institucional. Quando os jornais como o El Mundo vendiam, por exemplo, 350 mil exemplares, podiam depender em grande parte dos leitores. Mas quando as vendas caem 70%, passamos a depender de favores, precisamente daqueles que deveríamos vigiar. Aí acabamos por nos converter numa parte do sistema. Em vez de vigiar o sistema, tornamo-nos parte dele para sobrevivermos. Perdemos completamente a nossa essência, o espírito do jornalismo. Quais foram as pressões mais poderosas, as económicas ou as políticas? Para mim foi muito mais difícil fazer frente ao poder económico. Estive como correspondente na Bolívia, no regime chinês, na Coreia do Norte, na Birmânia, fui detido em vários sítios e estava acostumado à pressão política. Em contrapartida, quando o nosso jornal tem dificuldades para pagar os salários aos seus jornalistas, quando temos problemas até para enviar os jornalistas para fazerem a cobertura de qualquer coisa porque não há dinheiro, é muito difícil. Se uma grande empresa como a Telefónica, por exemplo, nos diz que se publicamos uma
“A Espanha é um país polarizado. Tinha leitores que me exigiam que denunciasse a corrupção, apenas a dos outros, não a daqueles em quem votavam.”