A liberdade de dizeres que eu não devia existir
Fernanda Câncio
Houve um ataque terrorista antissemita esta quarta-feira na Alemanha. Morreram duas pessoas, outras ficaram feridas. Tanto quanto se percebe, nenhum dos mortos é judeu porque o atacante não conseguiu o seu objetivo, entrar na sinagoga onde estavam várias dezenas a celebrar oYom Kipur.
Matou uma mulher de 40 anos, Jana Lange, que ia a passar e o interpelou porque achou que estava a estalar bombas de Carnaval à porta do templo e um homem de 20, Kevin S., num estabelecimento de kebab (era hora de almoço) ali perto. Queria matar judeus, matou quem apanhou.
É uma espécie de fábula: alguém que saiu de casa armado até aos dentes para matar judeus pode afinal acabar por matar seja quem for. Porque quem mata judeus também mata não judeus. Porque, afinal, para matar judeus tem de estar preparado para matar gente. Até pode matar outros nazis como ele. Dir-se-ia óbvio, mas se calhar é preciso sublinhar que quem traz vários quilos de explosivos no carro, granadas, caçadeira, metralhadora e a determinação de uma carnificina não vai andar a perguntar as convicções políticas às vítimas.
Não vai perguntar se como ele também acham o Holocausto uma invenção, e os judeus, as feministas e os estrangeiros uma infestação a combater. Não perguntará o que acham de alguém que nega o extermínio metódico, pelos nazis, de judeus por serem judeus se preparar para exterminar metodicamente judeus por serem judeus. Não perguntará se concordam com os seus motivos, anunciados ao mundo no vídeo que, como o terrorista que atacou uma mesquita na cidade neozelandesa de Christchurch, fez do ataque e transmitiu em direto online.
Graças a esse vídeo e ao facto de ter havido media que o publicaram, a mãe de Kevin pôde ver o filho a morrer ao balcão do kebab. Graças a esse vídeo e a outros do mesmo tipo podemos também fazer uma experiência: comparar o que diz o seu autor com o que tantas vezes vemos repetido em comentários, posts online e no discurso de políticos e demagogos mundo fora. E daí podemos tirar ou não conclusões.
Entrevistado pela TV alemã na noite do ataque, Hajo Funke, professor da Universidade de Berlim e autor de várias obras sobre nacionalismos e extremismos, falou da necessidade de “acabar com o discurso de ódio.” E dá o exemplo do político alemão Björn Höcke, do partido de extrema-direita AfD/Alternativa para a Alemanha, “que no seu livro programático [Nie zweimal in denselben Fluss/Nunca duas vezes no mesmo rio, 2018] afirma que quer expulsar milhões de pessoas deste país para fora, e o quer fazer com – cito – ‘uma crueldade bem doseada, bem afinada’. Ou seja: com sadismo. Isto não pode ser, não se pode admitir no espaço público, nos media. Isto destrói não apenas o sentido da moral, mas também a sociedade”.
Hocke, que em 2017 descreveu, num discurso, o memorial do Holocausto em Berlim como “um monumento de vergonha no coração da capital”, pegou-se em setembro com um jornalista que leu passagens do livro dele a membros da AfD e perguntou se achavam que eram do correligionário ou de Mein Kampf (Minha Luta), de Hitler. Alguns acharam que era do segundo. Confrontado com a semelhança entre a sua terminologia e a de Hitler, Hocke abandonou a entrevista a meio.
Funke não disse como se põe em prática a inadmissibilidade que preconiza para este tipo de discurso. Diz só o óbvio, depois de lembrar que em junho, pela primeira vez desde a fundação da RFA, um político alemão,Walter Lübcke, da CDU (partido de Merkel), foi assassinado por um membro da extrema-direita, alegadamente por causa da sua defesa do acolhimento de refugiados: “São tempos perigosos, e temos de lutar contra isso.”
Lutar como? Temos as nossas constituições, claro, e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Mas como se operacionalizam, no dia-a-dia, esses princípios fundadores? Josef Schuster, representante do Conselho Central dos Judeus da Alemanha, entrevistado no mesmo noticiário (traduzido para português por Helena Araújo, portuguesa a viver em Berlim, no blogue 2 Dedos de Conversa), parece ter uma ideia. “Há linhas vermelhas que estão a ser ultrapassadas, ideias que as pessoas tinham mas não se atreviam a dizer em público começaram a ser aceitáveis. E às palavras seguem-se atos – isto é um facto conhecido, que hoje, infelizmente, se verificou mais uma vez. (…) A sociedade tem de fazer algo que é independente deste atentado, e que é fácil – mas se calhar muito difícil. É o conceito de coragem civil. Começa no nível mais simples: quando num café alguém fizer afirmações antissemitas, racistas, xenófobas, alguém tem de se erguer e dizer ‘reparaste no que acabaste de dizer?, pensas mesmo isso que disseste?, parece-te que o que disseste é aceitável?’ – é a isto que chamo coragem civil. E se for claro que estas afirmações, que estas opiniões são rejeitadas, é um passo muito importante.”
Como Schuster diz, é fácil mas se calhar muito difícil. E não é que seja difícil apenas porque afrontar gente que diz coisas inadmissíveis e perigosas pode ser arriscado, do ponto de vista da integridade de quem afronta. Também é difícil porque as linhas vermelhas que refere estão a ser ultrapassadas por se ter solidificado a noção de que não há ideias “erradas”, de que “palavras são só palavras”, que tudo se dirime no debate livre. Porque quem diz “é inaceitável o que disseste” é apontado como querendo “censurar” e “calar”, atentando ao fundamental direito da liberdade de expressão. Porque se defende que essa liberdade significa que tudo pode ser debatido – e “ganha” quem conseguir demonstrar que o outro está errado. Ou vice-versa – é sobretudo, aliás, vice-versa.
Claro que em teoria tudo pode ser debatido. Quando não estamos a pensar na possibilidade de alguém querer, por exemplo, debater o direito que temos a existir. Porque é disso mesmo que se trata quando se fala de passar as linhas vermelhas: haver quem ache que pode “debater” a esse nível.
O nível de debater se houve ou não Holocausto. Se todos os muçulmanos são terroristas. Se os negros são inferiores aos brancos. Se as feministas querem exterminar os homens ou subjugá-los. Se se justifica matar uma mulher que “engana o marido”.
Que há para debater sobre afirmações tão obviamente falsas e que até, de acordo com a legislação nacional, podem ser consideradas crime?
Ou, noutro nível, se Obama é americano. Se a parlamentar americana democrata e muçulmana Ilhan Omar “odeia a América” – facto de que Trump, que já a tinha mandado “de volta para a terra dela”, a acusou num comício nesta quinta-feira. Se Joacine Katar-Moreira, a cabeça-de-lista do Livre, cometeu ou não traição ao país por na noite das legislativas terem surgido bandeiras da Guiné, onde nasceu, no palco em que comemorava a eleição.
Debater qualquer destas coisas significaria admitir estarmos perante duas posições de igual valor, cada uma delas “discutíveis”. Debater significa admitir que dos dois lados há boa-fé.
Não. De um deles existem apenas acusações baseadas em mentira ou desconhecimento deliberados (para o caso são o mesmo) – ódio, em suma. O ódio aos judeus que leva a afirmar que inventaram o Holocausto para se vitimizarem e ganharem poder, como o ódio a Joacine que leva a afirmar que finge ser gaga para conquistar simpatia e votos.
São palavras? Sim. E são violência. Que fere, difama, humilha, acicata, levanta tropas. Que cria alvos e os torna legítimos. Que diz “fogo à vontade”.
Quem finge não ver, quem escolhe ver nisto “forças de expressão” e “debate musculado” ou, como se leu ultimamente, “guerra de palavras” está a ser cúmplice.
Porque se não sabemos exatamente como se combate isto com eficácia, sabemos exatamente como foi eficaz, para chegarmos aqui, gritar “censura” e “ai-jesus o politicamente correto” de cada vez que alguém se indigna ou pede ação.
E deveríamos saber outra coisa: como em Halle, quando os assassinos saem à rua somos todos judeus.