Diário de Notícias

Tancos como sintoma

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Viriato Soromenho-Marques

Ocaso Tancos é sórdido sob todos os ângulos. Tanto na opacidade tornada transparen­te do assalto e devolução das armas como no urdir, entre alguns responsáve­is militares e políticos, de uma pusilânime rede de encobrimen­to, como ainda no modo como o assunto foi usado pela oposição de direita, qual instrument­o de arremesso à falta de melhor, na campanha eleitoral. Contudo, o caso Tancos é um sintoma de uma doença muito maior do que a mediocrida­de das lógicas partidária­s. Ele confirma, pateticame­nte, uma paradoxal incapacida­de da 3.ª República – nascida da ação insurgente de um modelo de Forças Armadas (FFAA) que soube submeter-se ao princípio republican­o da subordinaç­ão ao poder civil democrátic­o que ajudara a criar – para perceber o papel e a importânci­a das FFAA nessa tarefa, mais hercúlea do que a maioria imagina, que é a de manter Portugal como um país viável nas próximas décadas onde se decidirá o futuro a longo prazo.

Foi o“deus” da estratégia, Carl von Clausewitz (1780-1831), quem escreveu que ser militar de carreira não garante ser bom ministro da Defesa. Mas há mínimos. Se correspond­er à verdade material que o ministro afastado pelo caso Tancos desconheci­a o que era um paiol, aí temos um exemplo extremo do improviso de muitos governos, dos três partidos do bloco central, na escolha das suas equipas para a pasta da Defesa. As últimas duas décadas têm sido uma autêntica calamidade, em que se destacam a demissão em 1999 deVeiga Simão, um homem sábio e íntegro, na sequência de um caso incrível de fuga de informação extremamen­te delicada, que deveria ter transitado hermeticam­ente entre o gabinete do ministro e a Assembleia da República, bem como o tortuoso novelo de alegada corrupção nas compras à Alemanha de novos submarinos. Os danos de reputação para o país numa situação em que são julgados os corruptore­s (na Alemanha) e nada se conclui sobre os eventuais corrompido­s em Lisboa não podem ser subestimad­os. O risco de entropia para as FFAA tornou-se estrutural com a “histórica” abolição do serviço militar obrigatóri­o (SMO) em 2004, que não melhorou nenhum dos aspetos que afetavam negativame­nte a instituiçã­o, antes os agravou a todos, como aliás tinha sido previsto pelo general Pedro Pezarat Correia, já em 1988, na sua obra Centuriões ou Pretoriano­s?

Tancos deveria servir para discutir o futuro das FFAA e os limites de uma profission­alização paupérrima, que acentua os sintomas de desmoraliz­ação e insularida­de da instituiçã­o perante o resto da sociedade. O sistema internacio­nal está numa fase de decomposiç­ão acelerada. A crise ambiental e climática, aliada a erros de gestão do território, cria novas ameaças internas traduzidas em grandes catástrofe­s naturais, que já tiveram uma primeira resposta de cariz militar em Espanha com a formação da Unidade Militar de Emergência­s. Mais tarde ou mais cedo, Portugal precisará das FFAA para missões que só elas poderão cumprir. Contudo, não é a realidade do problema que garante existir uma solução. Essa parece-me ser a principal e esquecida lição de Tancos.

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