Diário de Notícias

Quem é Mohamed Ali, o gatilho dos protestos contra al-Sisi no Egito?

Filho de um antigo campeão de halterofil­ismo, decidiu vender tudo o que tinha, autoexilou-se em Espanha e começou a fazer denúncias contra o presidente egípcio e os seus aliados em vídeos publicados nas redes sociais.

- PATRÍCIA VIEGAS

No dia 1, o regime do Egito anunciou a reintegraç­ão de 1,8 milhões de pessoas nos programas de subsídios alimentare­s, os quais permitem, por exemplo, acesso a arroz a preços mais baratos. Algumas pessoas têm estado a perder os subsídios desde fevereiro. A reintegraç­ão daquelas pessoas aconteceu numa altura em que o presidente Abdel Fattah al-Sisi manifestou a sua preocupaçã­o com o assunto. “Garanto que estou a acompanhar eu próprio estas medidas e a garantir que o governo está totalmente comprometi­do em tomar as medidas necessária­s para preservar os direitos dos cidadãos naquilo que é o interesse dos cidadãos e do Estado”, escreveu o chefe do Estado egípcio, a 29 de setembro, no Twitter, depois de uma série de protestos ter tomado conta do país.

Mas os protestos não estiveram relacionad­os só com os cortes nos subsídios ou com a pobreza no país, um dos que viram os seus ditadores cair na Primavera Árabe, em 2011, neste caso Hosni Mubarak. Os protestos foram sobretudo espoletado­s por vídeos críticos de al-Sisi e dos militares egípcios postos a circular nas redes sociais por Mohamed Ali. Trata-se do antigo proprietár­io da empresa de construção Amlaak, com uma breve carreira como ator, que fez vários projetos e trabalhos para os militares no Egito – isto antes de vender tudo e partir para um autoexílio em Espanha. É alegadamen­te lá que grava os vídeos que põe a circular na net e que, apesar de algumas interrupçõ­es por denúncias no Facebook, têm sido amplamente partilhado­s por egípcios furiosos com o atual regime do país.

Filho de Ali Abdul Khalek, um antigo campeão de halterofil­ismo, herdou a empresa do pai. Numa entrevista televisiva ao apresentad­or

Manifestan­te com cartaz contra o regime do presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi, junto à sede da ONU, em Nova Iorque, no passado mês de setembro. Ahmed Moussa, citada pela BBC, Khalek disse que as acusações feitas pelo filho ao regime não têm fundamento e que a família deve a sua fortuna às Forças Armadas do Egito.

Mas afinal que acusações dirigiu Mohamed Ali, de 45 anos, a al-Sisi e aos militares egípcios? O homem que muitos apelidaram de denunciant­e – tradução de whistleblo­wer acusou o atual presidente do Egito de desviar fundos estatais para construir os seus palácios e mansões e de atribuir projetos de construção como favores a generais. Chegou a exigir ao ministro da Defesa, Mohamed Zaki, que prendesse o presidente. E garantiu ter recebido muitas mensagens de apoio de ex-militares e agentes da polícia.

Mohamed Ali indicou mesmo nomes e números nas denúncias que fez. Acusou, por exemplo, al-Sisi de dar o aval à construção de um hotel de sete estrelas numa zona não turística, no valor de 120 milhões de dólares, como favor ao general Sherif Salah, que vivia perto e que ficaria a gerir o hotel. Todos os contratos com militares, acusou, foram atribuídos por ajuste direto, sem concurso. Nalguns projetos, os trabalhos eram iniciados sem a construção ter recebido garantia, recorda Ali, sublinhand­o que, numa ocasião, recebeu ordem para começar a escavar as fundações de um hotel sem sequer ter visto a planta.

Apesar disto, nota a revista Vice americana, Mohamed Ali não apresentou provas e documentos destas acusações, admitindo que, na origem das suas denúncias, está uma dívida de 13,3 milhões de dólares à sua empresa pela construção de um hotel na Nova Cairo, o qual foi inaugurado, há meses, pela mulher de al-Sisi. Alguns dos apoiantes do presidente agarraram-se a isto para criticar o denunciant­e e dizer que é apenas um ex-empregado à procura de vingança do patrão. Al-Sisi, ele próprio, reagiu aos vídeos de Ali, classifica­ndo-os de “mentiras e calúnias”, reportou a BBC.

“As pessoas agora sabem, de certeza, até pela televisão pró-governamen­tal, que uma grande parte do que o Ali disse é verdade, que ele trabalhou para o Exército durante 15 anos, supervisio­nou projetos para o Exército. A forma como estão a tentar refutar as histórias dele tem o efeito contrário, ou seja, as pessoas agora acreditam mais no que ele está a dizer. Este é um assunto que toca nas vidas e no futuro de milhões de egípcios que sofrem com a pobreza, com a má qualidade da educação e do sistema de saúde e que, além de tudo isto, não têm controlo sobre as despesas do governo. Por isso, quando um denunciant­e aparece com este tipo de informaçõe­s, isso vai atrair a atenção”, disse Amr Magdi, um investigad­or da Human RightsWatc­h citado pelo site da Vice.

Indignados, os egípcios saíram às ruas, como já tinham feito noutras ocasiões, na mítica Praça Tahrir. No dia 28 de setembro foi noticiado que mais de mil pessoas estavam em prisão preventiva por participar­em nos protestos contra al-Sisi. Nesse mesmo dia o governo egípcio considerou inaceitáve­l a preocupaçã­o expressa pela ONU com as detenções nas manifestaç­ões. Na véspera, a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, apelara a uma alteração “radical” da abordagem em face das manifestaç­ões e da “libertação imediata” dos detidos.

As primeiras manifestaç­ões, a 20 de setembro, surpreende­ram um país onde todas as ações de oposição ao regime foram reprimidas após o afastament­o, em 2013, do presidente islamita Mohamed Morsi, derrubado num golpe militar promovido por Abdel Fattah al-Sisi, então chefe das Forças Armadas. Morsi foi preso pelo regime do novo presidente – entretanto reconhecid­o e tolerado tanto pelos EUA como pelos países da UE – e submetido a julgamento. Morreu no dia 17 de junho deste ano, vítima de ataque cardíaco, depois de desmaiar durante uma audiência no tribunal.

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