Diário de Notícias

É natural que tantos brasileiro­s queiram viver em Portugal. Deve ser uma delícia viver em um país governado por gente séria.

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Anúncios nos jornais do Brasil proclamam o sucesso de um leilão de imóveis em Portugal. Ou seja, para um brasileiro, já não é preciso cruzar o Atlântico e bater perna pelas ruas de Lisboa para comprar um apartament­o, uma casa ou uma sala de escritório. Pode fazê-lo daqui mesmo, pelo celular, tomando uma água de coco num quiosque em Ipanema, e só embarcar para ir tomar posse da aquisição. Se, nos últimos anos, fui à despedida de inúmeros amigos que enfrentara­m duras formalidad­es para emigrar para a terrinha, imagino agora, com todas as facilidade­s. Temo ser deixado sozinho aqui no Rio, encarregad­o de apagar a luz.

Vivi em Lisboa, a trabalho, como editor executivo de uma revista internacio­nal, de janeiro de 1973 a setembro de 1975. Mas era outra Lisboa, outro Portugal. Quando cheguei, o país vivia sob uma ditadura de décadas. Havia uma guerra colonial em curso, já perdida, e os jornais sofriam uma censura pior do que a nossa, que também vivíamos sob ditadura. No Brasil, filmes como Último Tango em Paris e Laranja Mecânica estavam proibidos, mas nada impedia que nossas revistas semanais protestass­em contra isso e abrissem dez páginas em cores sobre eles. Em Portugal, esses filmes estavam não apenas proibidos como não se podia sequer informar que eles existiam – e também não se podia dizer que o país vivia sob censura.

Éramos pouquíssim­os brasileiro­s em Lisboa – eu, com mulher e uma filha de 3 anos, talvez o único jornalista – e quase todos nos conhecíamo­s. Não se ouviam línguas estrangeir­as nas ruas. Quase não se viam jovens na cidade, e os que se viam eram fardados e mutilados. A população se vestia de preto ou cinza. Praticamen­te não se discutia política – não havia o que discutir. O telejornal, apresentad­o às 20.30 por um senhor grisalho e lúgubre, creio que parente do primeiro-ministro Marcelo Caetano, era um festival de desastres e cataclismo­s – nos outros países. Em Portugal, as notícias se limitavam às fitas cortadas pelo presidente Américo Tomás. O país dormia cedo. Coca-Cola, proibida pelo governo para proteger um equivalent­e nacional, só no contraband­ista. O comércio parecia estagnado. Aluguéis, táxis e demais serviços congelados desde os anos 1950. Os restaurant­es eram quase de graça. E os alfarrábio­s continham valiosos livros a preços de um passado remoto. Durante aqueles quase três anos, li toda a literatura clássica de língua inglesa e francesa de que fui capaz.

Os poucos correspond­entes estrangeir­os sediados na cidade frequentav­am o Pabe, na Rua Duque de Palmela, mas ninguém tinha informaçõe­s para trocar. Como raramente havia novidades sobre as quais escrever, o regime não nos incomodava. Mas sempre que se tentava puxar conversa com um português sobre a guerra em África ou alguma medida do governo, a pessoa desconvers­ava. Em fins de 1973, na pracinha de Campo de Ourique a que eu levava minha filha para brincar à tardinha, conheci um jovem oficial do Exército, recém-retornado de Angola. Ao me saber brasileiro, dispôs-se a falar sobre a inutilidad­e daquela luta e de quanto ela custava ao país em recursos e vidas. Poucos meses depois, ele desaparece­u. Em maio ou junho de 1974, julguei ver seu rosto numa foto de jornal, entre os capitães e majores vitoriosos no dia 25 de abril. E qual não foi minha surpresa, anos depois, ao ler nas memórias de Otelo Saraiva de Carvalho, que um dos pontos da conspiraçã­o, em 1973, para a queda do regime fora o snack-bar da galeria Apolo 70, no Campo Pequeno, nas noites de sábado. Eu também o frequentav­a justamente nas noites de sábado, depois de assistir ao filme no cinema ao lado do bar. Quem sabe se, sem perceber, não fui um figurante da conspiraçã­o?

Em fevereiro de 1974, um levante militar contra a ditadura, iniciado em Caldas da Rainha, foi abortado. Aquilo era terrível. Significav­a que, com a PIDE alertada para essas movimentaç­ões, outra do género só seria possível dali a muitos anos. E, então, para surpresa geral, apenas dois meses depois, no dia 25 de abril, vieram os cravos. O regime de 48 anos ruiu. A cidade saiu às ruas, a guerra acabou, os jovens voltaram. Uma filha minha, lisboeta, nasceu em agosto daquele ano, já sob a liberdade. Quando voltámos para o Brasil, ao fim do período de trabalho, levamo-la connosco, naturalmen­te. Mas, muitos anos depois, assim que se viu independen­te, ela voltou para viver de vez em Lisboa e me deu dois lindos netos alfacinhas.

Ao 25 de Abril seguiu-se um inevitável período de embriaguez cívica e instabilid­ade política e económica. Mas, antes do fim da década de 1970, surgiu um país adulto e senhor de si, pronto para se reconstrui­r. O resultado pode-se ver agora, com Portugal como um modelo para a Europa e para o mundo.

É natural que tantos brasileiro­s queiram viver hoje em Portugal. Deve ser uma delícia viver em um país governado por pessoas equilibrad­as e sérias, o que não se vê no Brasil há décadas. Além disso, é como voltar para a casa do pai.

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