Um jogo entre Coreias é um acontecimento e um apelo à paz
Quase 30 anos depois, a Coreia do Sul de Paulo Bento defronta a Coreia do Norte em Pyongyang. Os dois países estão em conflito desde o século passado, mas o desporto tem dado uma ajuda no reatar das relações.
Em 2008, um jogo de futebol entre as duas Coreias – desde 1953 vivem sob um acordo de armistício – de qualificação para o Mundial 2010 causou uma enorme polémica. A partida, que seria realizada em Pyongyang, acabou por ser desviada para Xangai, na China, por decisão da FIFA. Tudo porque os norte-coreanos avisaram logo que se recusavam a içar a bandeira do adversário e o hino não seria ouvido no estádio.
Após o jogo realizado em Xangai, nova controvérsia, com a máquina de propaganda norte-coreana a tentar justificar a derrota, acusando Seul de manobras antidesportivas. “Os principais jogadores da República Democrática Popular da Coreia não conseguiam levantar-se por causa de vómitos, diarreia e dores de cabeça. Sem qualquer dúvida, tal foi provocado por um ato deliberado de adulteração dos alimentos”, lia-se num comunicado da federação norte-coreana, que acusava ainda o árbitro de ter sido “tendencioso”.
Na próxima terça-feira, quase 30 anos depois, as duas Coreias voltam a defrontar-se num jogo de futebol em Pyongyang – a última vez foi em outubro de 1990, um particular que terminou com o triunfo dos do norte por 2-1, numa iniciativa para promover a paz. O destino colocou os dois países no grupo H das eliminatórias asiáticas rumo ao Mundial 2022, onde também estão Líbano, Turcomenistão e Sri Lanka. Uma partida com um significado histórico e político que se joga num momento em que o ambiente entre as duas Coreias está bem menos tenso, fruto de um aproximar das duas partes nos últimos anos.
2018 marcou definitivamente uma nova fase nas relações entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, com os dois países a recorrer ao desporto e à competição para aliviar as tensões diplomáticas. Nos Jogos Olímpicos de Inverno, realizados em Pyeongchang, apresentaram uma equipa mista feminina de hóquei no gelo, e entraram juntas no desfile de abertura, com o atleta Chung Gum, do hóquei no gelo e nascido no norte, e Yunjong Won, do bobsleigh e nascido no Sul, a segurarem a bandeira branca com o desenho da península que abriga os dois países.
No mesmo ano formaram equipas conjuntas para o Campeonato do Mundo de ténis de mesa, promovido pela Federação Internacional de Ténis de Mesa, em Halmstad, na Suécia, bem como nos jogos asiáticos, na Indonésia. Realizaram-se também partidas de basquetebol amigáveis entre os dois países em Pyongyang. Também por esta altura, os dois países anunciaram uma candidatura conjunta aos Jogos Olímpicos deVerão de 2032.
O desporto e a competição contribuíram para a aproximação dos dois países, que em abril de 2018 reuniram-se na Zona Desmilitarizada da Coreia (ZDC), num encontro que juntou os líderes Kim Jong-un e Moon Jae-in e onde foi firmado um novo compromisso pela paz e pela desnuclearização da Península da Coreia, uma tentativa de pôr um ponto final no cenário de guerra técnica que dura desde o século passado – depois da guerra civil, em 1953, as duas Coreias assinaram um acordo de armistício para assegurar uma cessação completa das hostilidades e de todos os atos de força armada na Coreia até que uma solução pacífica final fosse alcançada.
“O jogo entre as equipas da Coreia do Norte e da Coreia do Sul, de qualificação para o Mundial 2022, realiza-se em Pyongyang. As duas seleções já se defrontaram seis vezes no Mundial, no entanto, é a primeira vez que um jogo oficial entre as duas seleções é jogado em Pyongyang. Como se abriu o início de
diálogo para a desnuclearização da Península Coreana com a participação da Coreia do Norte nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pyungchang, em 2018, espero que este jogo abra um caminho para incrementar diálogo e intercâmbio entre as duas Coreias, únicos países separados no mundo”, desejou Song Oh, embaixador da Coreia do Sul em Portugal, através do DN.
“As duas Coreias são geograficamente países muito próximos, mas na realidade muito distantes. Tecnicamente estamos em guerra sem tratado de paz. Como coreana a residir há muitos anos em Portugal, e apesar de ligada à indústria do futebol, as minhas expectativas para este jogo vão muito além dos três pontos em disputa. Há uma esperança de que este jogo possa contribuir para um melhor relacionamento entre as duas Coreias. O futebol é um desporto, todos querem ver um bom espetáculo, mas acima de tudo espero ver respeito, abraços e aplausos entre jogadores no final do jogo, independentemente do resultado. Que haja paz”, resumiu ao DN Hyunjung Jung, CEO da Best11 Sports, que reside há vários anos em Portugal e está a concluir o curso de Formação Executiva para Líderes da Federação Portuguesa de Futebol.
Restrições e histórias em Mundiais
Apesar da proximidade e do significado do jogo, são poucos os comentários e as informações. De acordo com relatos da imprensa sul-coreana, a comitiva liderada por Paulo Bento viajará de avião diretamente de Pequim apenas na véspera do jogo (segunda-feira) e foi restringida a entrada de estrangeiros, jornalistas incluídos, para presenciaram o jogo, o que vai contra as normas da FIFA. As únicas exceções são alguns diplomatas e, obviamente, elementos ligados à FIFA. Além disso, apesar de ainda não existir confirmação oficial, o jogo não terá transmissão televisiva.
Em 2017, por ocasião de um jogo de futebol entre as equipas de futebol femininas dos dois países, integrado na Taça da Ásia, em Pyongyang, a partida só passou na televisão norte-coreana dias mais tarde e com as imagens devidamente editadas.
Coreia do Norte e Coreia do Sul medem forças na terça-feira, em jogo relativo ao grupo H das eliminatórias asiáticas de apuramento para o Mundial 2022. A duas seleções partilham o primeiro lugar, com seis pontos somados em dois jogos, embora a equipa treinada por Paulo Bento tenha uma diferença de golos superior, muito à custa da goleada por 8-0 ao Sri Lanka, na quinta-feira. Nesta primeira fase do apuramento para o Campeonato do Mundo do Qatar, só o primeiro classificado do grupo segue em frente e tem possibilidades de marcar presença no Mundial de 2022.
Teoricamente, a Coreia do Sul é favorita. A Coreia do Norte apenas por duas vezes conseguiu marcar presença em Mundiais de futebol. Em 1966, em Inglaterra, apesar de ser a seleção menos cotada da prova, chegou aos quartos-de-final, depois de ter deixado pelo caminho, na fase de grupos, a poderosa Itália. Nos quartos, contudo, viria a cair frente a Portugal, numa partida épica em que esteve a vencer por 3-0, mas acabaria por sair derrotada por 5-3. A outra presença aconteceu em 2010, na prova realizada na África do Sul, onde não passou da fase de grupos, e sofreu uma nova goleada de Portugal (7-0).
Já a Coreia do Sul, que tem Paulo Bento como selecionador desde agosto de 2018, tem sido uma das seleções asiáticas mais bem-sucedidas, com dez presenças em Mundiais, nove das quais de forma consecutiva. Em 2002, quando organizaram a prova em conjunto com o Japão, terminaram na quarta posição. Em 2010, chegaram aos oitavos-de-final e, no último torneio, apesar de terem ficado pela primeira fase, conseguiram a proeza de vencer a Alemanha na fase de grupos. No Mundial 2022, porém, apenas uma das Coreias poderá estar presente...