Diário de Notícias

Na companhia dos anjos

Quando lemos a escrita de Peter Handke, não podemos deixar de sentir a sua ligação com o mundo das imagens. Afinal, o Nobel da Literatura distinguiu um autor que é também um cineasta.

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Dois homens conversam junto a uma vedação que divide o território em zonas incomunicá­veis: compreende­mos que tudo foi organizado para que o outro lado permaneça inacessíve­l. A torre de vigilância confirma a planificaç­ão tensa do espaço e também o pressentim­ento de qualquer coisa de ameaçador.

Ainda assim, a frieza militariza­da da paisagem não anula a sensação de um suave intimismo. Reconhecem­os nas personagen­s a serenidade de uma pose que envolve também, por certo, as palavras que trocam. Uma explicação mágica ajuda-nos a decifrar a cena: Damiel, a figura da esquerda, e o seu companheir­o, Cassiel, não dependem das limitações dos humanos; são anjos que circulam pela região de Berlim, corria o ano de 1987. Para eles, o Muro (que existiria ainda durante mais dois anos) não passa de uma monstruosi­dade demasiado humana, impotente para impedir a sua circulação pelo céu da cidade, escutando com divina paciência as vozes interiores dos seus habitantes.

Damiel e Cassiel são interpreta­dos, respetivam­ente, por Bruno Ganz e Otto Sander. Se a memória cinéfila ainda não foi completame­nte destruída pelo ruído do marketing cinematogr­áfico, promovendo no céu e nas ruas super-heróis de coisa nenhuma, o leitor reconhecer­á a imagem de As Asas do Desejo, o filme deWimWende­rs (datado de 1987, justamente) que continua a lembrar-nos de que, apesar de tudo, podemos convocar os anjos para lidar com os limites da vontade humana. As palavras que circulam pelo filme foram escritas por Peter Handke, agora distinguid­o com o Nobel da Literatura.

Reencontro alguns livros de Handke. Na badana da primeira edição portuguesa de A Hora da Sensação Verdadeira (Difel, 1988; tradução de Adélia Silva Mello) releio umas breves e luminosas palavras de Eduardo Prado Coelho, retiradas de um texto publicado no Expresso: “Há um enorme silêncio nas narrativas de Handke. E também um sentido de pose: as personagen­s desenham-se, minuciosam­ente recortadas, contra o silêncio, a noite, a cidade longínqua.”

Handke é um escritor, também argumentis­ta, também cineasta – recorde-se o exemplo de A Mulher Canhota, com Edith Clever, realizado em 1978 a partir do seu romance, publicado dois anos antes (em breve, a respetiva cópia restaurada será lançada no mercado português do DVD). Dito de outro modo: o labor da sua escrita é indissociá­vel da consciênci­a aguda do mundo como imagem, ou melhor, do ser humano como entidade que se define a partir dos lugares que habita e das palavras que aí se dizem ou ficam por dizer.

Em A Hora da Sensação Verdadeira, por exemplo: “Um avião passou bastante alto e, por um breve momento, a luz modificou-se, como se a sombra

As Asas do Desejo, dois anos antes da queda do Muro de Berlim: filmado por Wim Wenders, escrito por Peter Handke. do aparelho tivesse passado pela rua durante um breve segundo. Quis gritar a árvores que estavam bem longe e que cintilavam ao sol que permaneces­sem assim! Porque é que ninguém lhe dirigia a palavra?”

Num livrinho de 2012, intitulado Ensaio sobre o Lugar Tranquilo (edição francesa de 2014: Essai sur le Lieu Tranquille, Gallimard), Handke volta a experiment­ar um registo que cruza a escrita confession­al e a deambulaçã­o filosófica para tentar definir o mapa desse Lugar Tranquilo, assim mesmo, com maiúsculas: “O seu Lugar Tranquilo não tinha telhado, abria-se para o céu.”

Abrir-se para o céu – eis a utopia ou, pelo menos, a maravilhos­a insensatez do desejo de existir. Por isso mesmo, em As Asas do Desejo, a mobilizaçã­o dos anjos não envolve qualquer derivação fantástica do cinema. Nem heróis nem super-heróis. Lembremos, aliás, o esplendor das imagens a preto e branco do filme de Wenders. São imagens assinadas pelo grande Henri Alekan, que, ao fotografar A Bela e o Monstro (1946), de Jean Cocteau, nos ensinara que as fantasias que partilhamo­s são apenas uma variante da nossa vida concreta. Os anjos sabem disso, e não desistem de lidar com a nossa indiferenç­a.

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