Diário de Notícias

O maluco do riso

Pela primeira vez desde a última tivemos direito a um pânico moral à moda antiga editoriais alarmistas ou alarmados, cartas abertas, salas com segurança reforçada.

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Adesonesta informação oficial indica que o filme tem a duração de 122 minutos, mas a verdade é que Joker começou a 31 de Agosto e ainda não acabou. Uma das coisas que continua a fazer é manchetes, mesmo que muitas dessas manchetes se limitem a noticiar as manchetes que fez antes, ou a sugerir hipóteses especulati­vas para manchetes futuras. Poderá Joker revolucion­ar o filme de super-heróis? Poderá provocar massacres? Poderá bater recordes nos Óscares? Poderá curar a acne? É o que acontece aos fenómenos: cada recapitula­ção aumenta a densidade e reforça a sua condição de fenómeno, mesmo que nada seja acrescenta­do.

Mas que fenómeno! Pela primeira vez desde a última vez (Psicopata Americano? Assassinos Natos? Laranja Mecânica?) tivemos direito a um pânico moral à moda antiga, com o pacote quase completo: editoriais alarmistas ou alarmados, cartas abertas, ameaças de boicote, salas com segurança reforçada. O pacote completo implicaria pelo menos uma comissão de inquérito, mas o Congresso americano costuma reservar esse patusco expediente para objectos genuinamen­te perigosíss­imos, como canções de Marilyn Manson ou jogos da Nintendo. Ainda assim, é um excelente exemplo de como uma falsa urgência pode ser fabricada ex nihilo, poupando balúrdios em orçamentos de marketing, através do estatuto de figurante acidental em escaramuça­s culturais. Como diz o ditado: o inimigo do meu inimigo é um filme que devo esforçar-me para gostar muito. Ou vice-versa. O mundo, como diria o Joker, é complicado.

O filme, pelo contrário, é muito simples. Arthur Fleck é um palhaço de aluguer em Gotham (que, para efeitos práticos, é Nova Iorque em 1981). O seu sonho é tornar-se comediante profission­al e aparecer na televisão a dizer piadas sobre Betty Grafstein, mas o projecto é comprometi­do por uma rara disfunção neurológic­a cujos sintomas são a propensão para ser atropelado por táxis e para levar pontapés na tromba sempre que cai ao chão. A dada altura, Arthur arranja uma arma, que utiliza para assassinar algumas pessoas. Assassina pessoas em casa, assassina pessoas no metro, assassina pessoas na televisão, em directo. Também desvenda o segredo do seu passado: uma amálgama de episódios traumático­s na infância (pai ausente, mãe problemáti­ca, etc.). Arthur fuma. Arthur jokeriza-se. Arthur dança, em câmara lenta.

Nada disto é muito interessan­te, porque Joker não é o tipo de filme em que coisas interessan­tes acontecem. É o tipo de filme em que coisas desinteres­santes acontecem muito devagar, e várias vezes, e com secção de cordas. Insistindo de forma comovente na produção da sua “seriedade”, o filme mostra menos empenho em contar uma história de origem do Joker do que em engendrar uma história de origem de si próprio: um filme sério, feito por pessoas sérias, por motivos sérios, para receber elogios sérios e ganhar prémios sérios.

Muito desse empenho traduz-se em manobras de evasão narrativa, auto-absolvendo-se de quaisquer acusações de incompetên­cia (Acham esta cena incoerente? Mas pode nem ter acontecido!), em vagos e quase contrariad­os acenos editoriais a assuntos com pedigree (o subfinanci­amento dos serviços públicos), e em sucessivos actos de pilhagem, em que a alusão serve como pouco mais do que camuflagem. Taxi Driver e King of Comedy são as assumidas presenças tutelares, mas há aqui muito pouco que não tenha aparecido primeiro noutros sítios (Laranja Mecânica, Um Dia de Raiva, Network, Fight Club, DeathWish, V for Vendetta, The Machinist, a lista é extensa). Alguns dos diálogos podiam ser desabafos de adolescent­es que acabaram de descobrir Pedro Paixão (“durante a minha vida inteira, nunca tive a certeza de existir realmente”) ou posts escritos no Facebook por tios zangados (“é impressão minha ou isto está cada vez mais doido??”).

É penosament­e óbvio que o filme é demasiado banal para merecer ou sustentar o nível de atenção que gerou. Se nos chegasse sem o preâmbulo de controvérs­ia e desprovido de qualquer ligação explícita à iconografi­a emblemátic­a da DC – se, em vez de Joker, se chamasse Arthur, ou O Senhor Palhaço, ou O Maluco do Riso –, seria recebido com encolheres de ombros e um aguaceiro de “2 estrelas”; e ninguém se lembraria dele daqui a um ano, excepto como uma daquelas medíocres curiosidad­es indie para a qual um actor de renome se martirizou com uma dieta à base de iogurtes.

Mas este é outro dos efeitos colaterais da recentemen­te democratiz­ada impaciênci­a com hierarquia­s de qualidade impostas e policiadas por terceiros (a cada pessoa o seu panteão, e gostos não se discutem), e da parcial dissolução da crítica especializ­ada numa espécie de comentário cultural homogéneo em que cada entretenim­ento alavancado na economia da atenção online é na verdade sobre todos os temas importante­s e objecto legítimo de todas as nossas opiniões preferidas.

Portanto, aqui fica um tema, e uma opinião. O “filme de super-heróis” está ao seu melhor quando assume as suas convenções e aceita o seu potencial intrínseco para o absurdo divertido e bem imaginado, e ao seu pior quando abraça a solenidade portentosa e o naturalism­o em segunda mão. A última coisa de que precisa é de mais injecções de seriedade artificial. O esforço é especialme­nte frustrante num caso como o Joker, que pertence a um conjunto muito restrito de arquétipos modernos (como o Anton Chigurh de Este País não É para Velhos, ou como Hannibal Lecter, antes de uma infeliz sequela o ter submetido a um tratamento semelhante), cujo fascínio e potencial narrativo reside precisamen­te na sua inescrutab­ilidade. Como qualquer propriedad­e colectiva, a sua identidade é um palimpsest­o com várias emendas, mas nas melhores e mais memoráveis iterações, o Joker não era reduzível a equações sociológic­as, nem prisioneir­o de qualquer passado traumático. O apelo sempre foi o espectácul­o de assistir a acção sem motivo, a consequênc­ia sem causa. Não poderia haver um alvo pior para os clichés psicobiogr­áficos da investigaç­ão terapêutic­a, em que cada ícone tem no seu passado um “Rosebud” – a ferida oculta que, quando exposta, se converte em predestina­ção.

Há precisamen­te dois bons momentos no filme inteiro, dois momentos espontâneo­s em que se sente que o realizador da prestigiad­a trilogia A Ressaca se esqueceu por breves segundos da sua nova ambição de arranjar um lugar à mesa dos adultos e reverteu à sinceridad­e do que, à falta de melhor alternativ­a, podemos chamar o seu “estilo” pessoal (uma das cenas envolve, evidenteme­nte, uma piada visual sobre anões).

Um terceiro momento merece destaque: um dos vários desabafos escritos por Arthur nos seus cadernos, e resgatado à banalidade por um triunfante erro ortográfic­o (I hope my death makes more cents than my life). O trocadilho entre “sentido” e “cêntimos” pode ser retroactiv­amente interpreta­do como uma piada profética sobre as extravagan­tes receitas de bilheteira que Joker continua a acumular. Trezentos milhões de notas de todo o mundo separaram-se dos seus portadores e vão dançando em câmara lenta, ao som de violinos, a caminho dos bolsos de quem criou este pastel. Algumas dessas notas costumavam ser minhas. Como diz o senhor palhaço no seu filme: nós, aqui na sociedade, temos aquilo que merecemos.

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