A culpa, solteira
Vivemos num mundo infantilizado, em que cada qual atribui aos outros as culpas de todo o mal que lhe acontece ou exige que sejam os outros a resolver os seus problemas.
Em Julho de 1925, um professor de uma cidadezinha do Tennessee foi levado a tribunal por ensinar aos alunos a teoria da evolução de Darwin. Dois anos antes, o estado do Tennessee tinha aprovado uma lei, o Butler Act, proibindo que fosse ministrada nas escolas públicas e até nas universidades “qualquer teoria que negue a história da Criação Divina do Homem como é ensinada na Bíblia”, sendo igualmente proscrito “ensinar que o Homem descendeu de uma ordem inferior de animais.” Não era caso único: na época, muitos estados da América aprovaram leis semelhantes, que impunham o ensino do criacionismo bíblico. O Oklahoma decidiu oferecer manuais gratuitos às escolas com a condição de os professores ou os livros não mencionarem sequer a palavra “evolução” e a Florida foi a ponto de aprovar uma lei antievolucionista.
John T. Scopes, assim se chamava o docente, era um modesto professor substituto numa escolinha de Dayton, no Tennessee, e, apesar de nunca ter falado aos seus alunos de Darwin e da sua teoria, aceitou dar-se como culpado num processo que teve motivações variadas. Desde logo, a influente American Civil Liberties Union queria obter um julgamento histórico que pusesse em causa as leis antievolucionistas, terminando até no Supremo, e para isso muniu-se do advogado de defesa mais famoso da época, Clarence Darrow. Mas havia outros interesses ao barulho, porventura menos nobres: um grupo de empresários de Dayton pretendia dar projecção à cidade em benefício dos seus negócios, e para tanto convenceu o professor Scopes a dar-se como culpado de darwinismo e a entregar-se às feras. Do outro lado da barricada, a defender o criacionismo, surgiu em cenaWilliam Jennings Bryan, peso-pesado do fundamentalismo bíblico, três vezes candidato às eleições presidenciais. Com enorme cobertura jornalística feita por repórteres afamados como H. L. Mencken, o processo ficou célebre e ainda hoje é lembrado como o “julgamento do macaco” devido às tempestuosas disputas que se travaram na sala de audiências, e fora dela, sobre a ascendência simiesca dos seres humanos. No final, o professor Scopes foi condenado a uma pesada multa, anulada em recurso com base numa minudência jurídica. E, ao contrário do que por vezes se diz, o “julgamento do macaco” não favoreceu a causa do evolucionismo: em muitos lugares da América, sucessivas gerações de estudantes continuaram a aprender que o Homem tinha sido criado à imagem e semelhança de Deus – e que Eva foi fabricada a partir de uma costela de Adão. Por muito que custe a acreditar, o Tennessee só revogou o Butler Act em 1968.
Quem ganhou com o processo, e muito, foram os homens de negócios de Dayton, doravante tornada célebre em toda a América pela refrega judicial entre evolucionistas darwinianos e criacionistas bíblicos. O engenheiro George Rappleyea, que congeminara o julgamento e que à porta de uma farmácia convencera o professor Scopes a dar-se como culpado e a ir a tribunal, com a fama alcançada pelo processo ascendeu à presidência de uma grande metalúrgica e mais tarde forneceu navios para a Segunda Guerra e para acções subversivas contra o regime cubano, entre outros tráficos armamentistas. O professor Scopes foi o entalado da história: com a vida pessoal e profissional transformada num inferno, foi perseguido e satirizado pela imprensa, escarnecido até mais não, e, como é evidente, viu barradas as portas do ensino no estado do Tennessee. Nas agruras da Grande Depressão mudou-se com a família para o seu Kentucky natal; aí tentou uma carreira política como candidato socialista ao congresso estadual, mas não foi eleito, e o resto da sua existência foi passada a trabalhar na indústria petrolífera texana. Morreu de cancro em 1970.
O “julgamento do macaco”, já atrás se viu, não beneficiou a causa do evolucionismo, e para muitos teve até um efeito contraproducente na árdua batalha pela verdade científica. Diz-se até que, curiosamente, foram os soviéticos que prestaram um involuntário serviço a essa causa, pois o alarme gerado pelo lançamento do Sputnik levou a América a despertar da letargia do pós-guerra e a fazer um investimento maciço na ciência, o que provocou sérios danos nas fábulas criacionistas. Ainda assim, os fundamentalistas não desistiram e na década de 1980 muitos estados norte-americanos aprovaram leis que impunham que a evolução de Darwin e a criação bíblica fossem ensinadas aos alunos em pé de igualdade, a par e par, como se fossem ambas duas explicações válidas e credíveis para a origem do Homem e do universo. Num célebre caso de 1986, 72 prémios Nobel tiveram de se mobilizar para convencer o Supremo a declarar a inconstitucionalidade de uma lei do Louisiana que impunha o ensino conjunto do evolucionismo e do criacionismo. Na altura, o Supremo decidiu a favor da ciência contra o fundamentalismo religioso, mas não é seguro que, se o caso se passasse nos dias de hoje, com a presidência de Trump e o domínio dos evangélicos, o bom senso prevalecesse. Quem tiver Netflix, veja o impressionante documentário Reversing Roe, sobre o aborto.
Temem alguns que a menina Greta Thunberg venha a ter um destino parecido, ou pior, ao do infortunado professor Scopes. Receia-se que a miúda enlouqueça com o brilho dos holofotes ou que esteja a ser manipulada e usada por interesses obscuros, numa campanha mundial que, como o “julgamento do macaco”, pode vir a revelar-se contraproducente para a causa ambientalista. Nas páginas do Público, João Miguel Tavares manifestou paternalista compaixão pela adolescente sueca, não disfarçando que, mais do que uma preocupação genuína com a miúda, o que o movia e move é atacar todos os que rendem culto “no altar do Deus-Verde” (cf. “O sacrifício de Santa Greta no altar do Deus-Verde”, Público, 25/9/2019).
Importa lembrar, no entanto, outros casos pretéritos, como o de Ruby Bridges (que, de resto, o meu amigo João Miguel Tavares bem conhece, e até já contou aos seus filhos como vida exemplar, digna de ser seguida). Na Primavera de 1960, Ruby Bridges, com 6 anitos apenas, ia à escola em Nova Orleães protegida por um batalhão de agentes de segurança federais. No caminho, insultavam-na, apupavam-na, atiravam-lhe ovos, tomates. Em manifestações horríveis, mães de família exaltadas chegaram a exibir a sua figura dentro de um caixão, em tom ameaçador e de morte. Ruby Bridges era a única aluna negra numa escola só para brancos. Melhor dizendo, era a única aluna, pois todos os pais de crianças brancas decidiram tirar os filhos da escola, em enojado protesto pela presença de uma menina de cor. Durante um ano lectivo inteiro, Ruby Bridges teve aulas sozinha, completamente sozinha, sem mais ninguém na sala. Graças à sua coragem, e à dos seus pais, o exemplo alastrou, e com o tempo outras crianças negras seguiram-lhe o exemplo. Ruby não tinha 16 anos nem era famosa, não tinha o apoio de pais ricos nem de milhões de pessoas em todo o mundo, não discursava nas Nações Unidas nem navegava em iates com príncipes monegascos. O que ela passou foi infinitamente pior do que aquilo por que está a passar Greta Thunberg. E Ruby sobreviveu, fez-se mais forte. Ruby Bridges Hall esteve em Lisboa, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em Setembro de 2017. Tive então o privilégio de a conhecer, tornámo-nos amigos com um Atlântico pelo meio. Mulher madura, desgastada pela vida, com um filho morto por homicídio, nas conversas que temos tido nunca lhe ouvi uma palavra de arrependimento ou dúvida por se ter exposto em criança à fúria racista, ao risco muito patente e evidente de ser espancada ou morta, de ter a família assassinada por um louco supremacista branco. Pelo contrário, Ruby Bridges criou uma fundação com o seu nome para promover a integração racial e a tolerância, e é uma militante empenhada na causa anti-racista. Com o apoio de Barack Obama, sonha até criar um programa de intercâmbio entre estudantes portugueses e americanos. Oxalá o consiga.
Aos que farisaicamente se preocupam com os destinos de Greta Ernman Thunberg, e aos que alarvemente fazem ordinários jogos de palavras com o seu nome (incluindo na nossa imprensa escrita!), devemos lembrar com prudência o caso do professor John Scopes e do “julgamento do macaco” e, acima de tudo, devemos recordar o comovente exemplo de Ruby Bridges Hall, a quem acreditar numa causa não fez mal, pelo contrário. Dêem-nos alguma coisa em que acreditar, não é assim?
O maior risco de Greta, como bem intuiu o professor Arlindo Oliveira (“O inimigo somos nós”, Público, 7/10/2019), é deixarmo-nos levar pela confortável ideia de que o problema do planeta e das alterações climáticas não é nosso, mas “deles”, dos políticos e dos capitalistas. Ainda há minutos, a minha filha Leonor me mostrou, indignada, uma lista que revelava que apenas vinte empresas emitiram 35% dos gases de efeito estufa em todo o mundo. Diabolizar a Saudi Aramco, a Chevron ou a Exxon/Mobil está certo e é muito bonito, mas a culpa é tanto delas como de quem anda de automóvel ou atravessa o mundo de avião a jacto (em Ju