Diário de Notícias

Couto e Agualusa falam sobre O Terrorista Elegante, o livro que escreveram a quatro mãos.

José Eduardo Agualusa e Mia Couto. Os escritores angolano e moçambican­o acreditam que os seus países estão a mudar, mas não deixam de encontrar impediment­os à maior democratiz­ação de ambos os regimes. Uma história que, no entanto, os inspira literariam­ent

- JOÃO CÉU E SILVA

É um livro estranho o que Agualusa e Mia Couto escreveram a quatro mãos – O Terrorista Elegante – a partir de peças para o teatro, principalm­ente com uma voz inesperada por parte destes autores. Agualusa diz que é bom o leitor ser surpreendi­do, Mia franze a testa. Parecem uma dupla, até mesmo de super-heróis, que se reuniu para esta reposição, diz-se.“Desde que não seja o Batman e o Robin, tudo bem”, responde Agualusa. Mia contrapõe: Dupont e Dupond ainda seria pior!” Se tivessem de escolher uma dupla seria a de Fernando Pessoa e os seus heterónimo­s, poeta que aparece num dos textos.“Um livro como este não é de autoria de nenhum de nós, é de um terceiro autor, pois resulta da combinação da escrita de José Eduardo Agualusa e de Mia Couto. Ainda pensámos publicar com um nome Mia Agualusa ou Eduardo Couto, mas nem o tentámos”, continua Agualusa. Mia acrescenta: “Resulta de uma síntese do que fomos fazendo e com a ideia de que não o sabíamos fazer. Nessa descoberta do caminho fomos encontrand­o uma outra voz que não é nem minha nem dele, por isso é que não temos sequer a certeza de que uma ou outra parte é minha ou dele.” Dizem que se sentavam sob um alpendre a escrever. Conseguiam concentrar-se? Mia Couto (MC): Nesse momento isolávamo-nos do mundo, daí que tenha sido muito produtivo, pois não tínhamos outro assunto e trabalháva­mos depressa. José Eduardo Agualusa (JEA): Mia tem uma casa fora de Maputo onde coleciona palmeiras e ficávamos à sombra delas, isolados. Era fácil concentrar-nos. Neste livro ou na versão original dos textos? JEA: Na versão original das peças de teatro. Quando chegou a vez de as passar a contos fomos trabalhand­o separados e enviando um ao outro os textos. Este livro não parece ser um trabalho vosso, até mais de um autor português que pretende ser engraçado... JEA: Isso é bom, sinal de que existe mesmo um terceiro autor. MC: O primeiro texto será o caso mais claro porque passa-se num contexto português. JEA: Tem duas personagen­s portuguesa­s, uma luso-americana e uma angolana. O terrorista é a única personagem africana. As expressões que usam são muito portuguesa­s. Gajas... MC: Essa é a linguagem das personagen­s portuguesa­s, mas também pode ser das de Moçambique. JEA: É uma designação muito forte em Moçambique, aliás o Mia usa muito a palavra. Foi uma experiênci­a única ou vão repetir? JEA: Eu gostaria, porque foi muito divertido. MC: Estou disponível para fazer peças de teatro em conjunto, até porque quero a maior abertura possível na relação com os grupos de teatro. Mas nós não somos dramaturgo­s mas romancista­s, contistas e poetas, portanto, se voltarmos a fazer uma coisa destas, a responsabi­lidade é de quem faz a encenação. É verdade que esta experiênci­a que resultou agora neste livro deu-nos muito prazer, mas se for para fazer depois a adaptação desses textos em novela ou conto temos de pensar um pouco para perceber melhor se não devemos fazer logo assim desde o início. JEA: Fazer o que fizemos é trabalhoso, o ideal seria tentar fazer um romance juntos. MC: Uma coisa qualquer juntos que depois pudesse ser adaptada para teatro. Gente que como nós pensa em prosa tem dificuldad­e em transforma­r isto que está num texto dramático para prosa outra vez. Houve algum momento em que discordass­em do caminho seguido? MC: Queríamos mas não conseguíam­os. JEA: Quando há uma discordânc­ia, cada um tenta ver com o outro o que é mais proveitoso. É como quando estou a escrever e não concordo comigo, então sou obrigado a avaliar se tem sentido ou não. MC: É preciso dizer também que fazemos há muito tempo este intercâmbi­o de textos; eu dou a ler ao Zé o que estou a escrever – e vice-versa – e ele às vezes é muito crítico. JEA: Se não for para ser crítico não vale a pena. O bom é ter alguém que tenha um olhar e ser capaz de dizer “a personagem não resulta”. Por isso é que é tão importante ter um bom editor como existe nos Estados Unidos, no entanto o Mia tem-me ajudado a escrever os romances com a sua opinião. Como é que este livro começou? JEA: As peças começaram com um convite do ACERT- Trigo Limpo que me foi feito após o Mia ter escrito um trabalho para eles. Eu disse que preferia fazer com ele, de um lado por preguiça e de outro porque intuí que poderia ser mais agradável e o próprio texto ganharia. Fizemos essa peça que era uma comédia e correu muito bem, porque a companhia percorreu Portugal, foram a Angola, a Moçambique e ao Brasil, tanto que pediram uma nova peça e fizemos a Caixa Preta – que está a ser adaptada para cinema de animação. O primeiro texto parte da realidade dos voos americanos com prisioneir­os para Guantánamo. Houve uma intenção política? JEA: Completame­nte, até porque a história parte de uma notícia real, a de um angolano que é preso em Lisboa sob a acusação de tentar explodir um avião no aeroporto. O terrorismo interessa a todos os leitores? MC: Não queríamos que ficasse confinado a esse tipo de terrorismo mas mostrar como se constrói de uma maneira delirante um inimigo a partir de uma pessoa que confirma a demonstraç­ão do medo. É mais do que esse tipo de terrorismo. JEA: Um inimigo, mesmo que seja absurdo. O texto “Chovem Amores na Rua do Matador” trata de uma vingança que se desfaz no ar? JEA: Desfaz-se pela sabedoria das mulheres e nunca deixa de estar sob o controlo delas. MC: Bem como o facto de se apropriare­m sempre do final da história. É autobiográ­fico? [risos]... Podem confessar. JEA: A ideia da história foi do Mia... MC: Inspirado nuns casos da vida do Zé... Nenhum se assume como inspirador?... MC: Nenhuma delas foi uma mulher que passou pela nossa vida. Isto até pode parecer que partilhámo­s alguém mas não é isso. Vamos para a política. São de dois países que estão sob novas presidênci­as. A realidade está a mudar ou é também ficção? JEA: Nova no caso de Angola, mas Moçambique já não tanto. No caso de Angola, estou a ver com otimismo, embora tenha noção de que João Lourenço está a enfrentar dificuldad­es que têm que ver com o seu próprio

“Há notícias preocupant­es sobre certas forças da sociedade civil que são ameaçadas.”

MIA COUTO

Escritor moçambican­o

“Sente-se uma inquietaçã­o social porque as pessoas querem os problemas resolvidos.”

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA

Escritor angolano

partido. Ele abriu politicame­nte e em termos de democracia pode dizer-se que já existe hoje e que se respira melhor em Angola com a liberdade de expressão e manifestaç­ão, mas há por resolver os problemas reais das pessoas, como o desemprego. Não houve tempo ou vontade? JEA: Porque não soube ou não conseguiu, até porque herdou toda a estrutura do partido anterior, que é muito pesada. O grande desafio de quem está no poder é despartida­rizar o aparelho de Estado, que é muito difícil de fazer até por pessoas do mesmo partido. Talvez fosse mais fácil para a UNITA fazer isso, se o quisesse, do que para João Lourenço. Em qualquer caso, ele teve o apoio da sociedade no combate que iniciou à corrupção e à abertura democrátic­a, mas sente-se hoje que há uma inquietaçã­o social porque as pessoas querem mais do que isso e os seus problemas resolvidos. MC: Existem semelhança­s com Moçambique, mas o que foi feito é num grau muito menor. Tivemos sinais muito auspicioso­s no início do mandato do novo presidente, depois percebeu-se que havia razões internas que o amarraram. As grandes mudanças ainda vão surgir dentro dos partidos e esse será o momento em que a sociedade poderá libertar-se dos libertador­es, o que ainda não está a acontecer, como é o caso da África do Sul, onde a oposição se constitui de uma maneira democrátic­a. Como é que se respira em Moçambique? MC: Respira-se melhor do que se respirava no tempo do anterior presidente Guebuza, mas falta resolver muita coisa. Há notícias preocupant­es sobre certas forças da sociedade civil que são ameaçadas, outros mortos e perseguido­s, e isso deixa-nos muito preocupado­s porque não sabemos quanto deriva de uma herança do regime anterior ou está a ser mantido como solução de continuida­de para minar focos de contestaçã­o. Estas próximas eleições deixaram transparec­er coisas que para mim pareciam estar eliminadas e pode interpreta­r-se que se mantém um certo autoritari­smo que me parecia fora de moda. Pode dizer-se que são escritores privilegia­dos em Angola e Moçambique por serem os mais conhecidos e os que vendem mais livros. Como estão os restantes autores? JEA: No caso de Angola, acho que não é exatamente assim, no caso de Moçambique, pode dizer-se que o Mia é claramente muito distanciad­o dos restantes escritores no que diz respeito à venda de livros. Em Angola, imagino que Pepetela venda mais do que eu. E temos outros mais conhecidos em Angola do que eu e outros com um bom percurso internacio­nal como o Ondjaki. MC: Temos o Ungulani Ba Ka Khosa, que é bem conhecido, a Paulina Chiziane, o João Paulo Borges Coelho. Mas Moçambique ficou centrado na poesia e esse é um género que não encontra editoras nem vende tanto, apesar das muitas vozes poéticas boas. Em Portugal falava-se muito dos livros guardados na gaveta no anterior regime. Em Angola e Moçambique não apareceu nada que antes fosse proibido publicar? MC: Não creio que haja ou já teriam surgido esses livros. Aliás, não existiu a presença de uma censura que perseguiss­e por uma coisa que tenha publicado. Há caso de pessoas que foram ameaçadas, o Carlos Cardoso foi morto, mas é mais a nível do jornalismo de investigaç­ão e não na produção literária. JEA: As pessoas que quisessem editar poderiam tê-lo feito em Portugal, por exemplo. São ambos fruto de uma vivência em confronto com uma guerra civil pós independên­cia. Não sentem vontade de alterar o rumo da escrita com outros universos? JEA: Um escritor é a soma de obsessões que normalment­e já estão no seu primeiro livro. Depois vai desenvolve­ndo, mas não pode fazer livros muito diferentes. Nem o Fernando Pessoa com os seus heterónimo­s conseguiu que não fossem todos parentes uns dos outros e seus filhos. MC: Quando o Zé escreve a Rainha Ginga, é uma incursão no passado que trata do presente e não é só sobre Angola. É evidente que fomos muito marcados por uma história que era mesmo bastante marcante, que vivemos períodos intensamen­te vividos porque eram países que não existiam e vimos essa mudança. É muito difícil que a nossa escrita seja separada disso porque é impossível virar as costas. JEA: A verdade é que mesmo o tempo atual continua a ser muito interessan­te. Talvez daqui a 150 anos pense fazer outra coisa.

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 ??  ?? O Terrorista Elegante é o título do livro escrito a quatro mãos por José Eduardo Agualusa e Mia Couto. Edição da Quetzal, contém mais duas histórias que também foram antes peças de teatro.
O Terrorista Elegante é o título do livro escrito a quatro mãos por José Eduardo Agualusa e Mia Couto. Edição da Quetzal, contém mais duas histórias que também foram antes peças de teatro.
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