Como Ricciardi cercou o governo de Passos na privatização da REN
Os banqueiros chegaram a ameaçar com o corte de relações da China com Portugal e a sugerir a demissão de membros do governo. Se os ministros tinham dúvidas, o Banco Espírito Santo Investimento (BESI) pedia a amigos deles para as dissiparem. O DN falou com
Banqueiros chegaram a ameaçar com o corte de relações da China com Portugal e a sugerir a demissão de membros do governo. Se os ministros tinham dúvidas, o BESI – Banco Espírito Santo Investimento pedia a amigos deles para as dissiparem.
José Maria Ricciardi usava quatro telemóveis, pelo menos. E, naquele último dia de janeiro de 2012, eles não paravam de tocar, desde a manhã. A situação era crítica. Havia dúvidas dentro do governo se a privatização da REN deveria avançar, temia o banqueiro Ricciardi, do grupo Espírito Santo, primo de Ricardo Salgado. Mais: os seus próprios clientes, a poderosa State Grid chinesa, que é hoje a quinta maior empresa do mundo, segundo o ranking da Fortune, estavam a sentir-se prejudicados pelas regras do jogo. Sentiam-se limitados no seu investimento por serem uma empresa do setor energético, quando a lei permitia a fundos de investimento comprar mais do que 25% da REN, a fasquia máxima a que a State Grid pôde concorrer.
Por isso, o telemóvel do CEO do BESI (Banco Espírito Santo Investimento), um dos dois grandes bancos de investimentos de Portugal à época, recebia mensagem atrás de mensagem dos seus colaboradores mais próximos, que diziam quase todas o mesmo: devia ligar ao primeiro-ministro. Ricciardi tentou, mas Pedro Passos Coelho, de quem era amigo de longa data, não atendeu logo.
Esta história mostra como a estratégia de um banco de investimentos pode basear-se na proximidade com os decisores políticos, e um grupo de pessoas próximas de ambos que se moviam à vontade nos dois tabuleiros. Os banqueiros comentavam a impreparação e o desconhecimento dos governantes. Ricciardi elegeu uma lista de aliados, no governo, a quem se dirigia com bullet points, alvos, e uma outra de “inimigos”, de quem se queixava. E na altura decisiva subiu a parada e lançou uma ameaça.
Depois de tentar falar com Passos, Ricciardi ligou a Miguel Relvas, ministro adjunto. E o banqueiro passou esta mensagem: se o governo decidisse parar a privatização, a China poderia cortar relações diplomáticas com Portugal e parar todos os investimentos (além da EDP e da REN, empresas chinesas viriam a comprar parte do BCP, a Fidelidade e setores importantes do grupo Espírito Santo, como a saúde ou o pró
prio BESI). A alusão ao “corte de relações” foi extraordinária.
Sete anos depois, Miguel Relvas aceitou recordar esses acontecimentos. Dos vários contactos que teve com José Maria Ricciardi, nessa altura, Relvas desvaloriza a aparente ameaça diplomática lançada pelo BESI. “A mim nunca me pressionaram, e se pressionassem teriam a resposta adequada.” Para o ex-ministro, a ideia de que poderia haver um corte de relações com a China não passa de “excesso de zelo”. “A mim nunca me disseram isso. Alguma vez a China diria uma coisa dessas?”
Mas a pressão do banqueiro não se ficou por Miguel Relvas. No mesmo dia, Ricciardi fez uma nova tentativa para chegar a Passos. Ligou a Ângelo Correia, amigo e ex-patrão do primeiro-ministro, na Fomentinvest, e usou exatamente os mesmos argumentos que usara com Relvas.
Contactámos Ângelo Correia, que se lembra perfeitamente do telefonema de Ricciardi. “É verdade. Disseram-me isso. E avisei disso o primeiro-ministro.” O argumento usado era claro: “A China pode não investir e cortar a relação.” Por isso, Ângelo Correia explica que telefonou a Passos Coelho para o avisar do problema. “Achei que a gravidade do que me estavam a dizer era tanta que lhes sugeri que alguém devia dizer isso ao governo português. Disseram-me isso de um modo perentório.”
Passos Coelho, segundo Ângelo Correia, não reagiu: “Nem me perguntou nada. Ouviu apenas.” Mas a ameaça referida por Ricciardi estava lançada. “Se tinham mandato dos chineses, eu não sei”, adverte Ângelo Correia. “Mas disseram-me isso com um ar sério.”
Fontes diplomáticas contactadas pelo DN rejeitam qualquer hipótese de ter havido por parte da State Grid ou da China qualquer tipo de ameaça de retaliação diplomática. “Isso seria uma chantagem. Nunca aconteceu. Não faz sentido.”
Mas durante todo o dia 31 de janeiro de 2012 Ricciardi usou a mesma ideia. Depois de falar com Relvas e Correia, ligou a Carlos Moedas, que na altura era o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro e o responsável pelo acompanhamento da troika, com lugar no Conselho de Ministros. Moedas acabara de aterrar em Londres, onde estava com Vítor Gaspar, que daria nesse dia uma conferência sobre assuntos europeus na London School of Economics. O ministro das Finanças ia num carro com Maria Luís Albuquerque, a sua secretária de Estado, que era a responsável pelas privatizações. Moedas devolveu a chamada a Ricciardi no carro que seguia atrás.
Carlos Moedas não recorda o teor das conversas, mas lembra que era seu dever de ofício atender chamadas desse tipo. “Uma das minhas funções era receber todos os dias um grande número de entidades, representantes da economia real e da sociedade civil, que queriam transmitir queixas ou opiniões, evitando assim que incomodassem o senhor primeiro-ministro.”
Ricciardi tentara combinar um almoço com Carlos Moedas para o dia seguinte, 1 de fevereiro, véspera do Conselho de Ministros que decidiria, por fim, se a privatização avançaria e como. Carlos Moedas não se recorda se o almoço aconteceu, mas nega ter sido pressionado: “Não me lembro do almoço específico que refere com José Maria Ricciardi. Mas certamente me lembraria caso tivesse sentido qualquer tipo de pressão, o que não foi o caso.”
No dia seguinte, 1 de fevereiro, Passos devolveu a chamada a Ricciardi. Hoje, o então primeiro-ministro assegura que as abordagens de Ricciardi ao governo tiveram “peso zero” na forma como foi decidida a privatização da REN. “A privatização avançou sem nenhum cálculo político do governo”, garante. “Nenhum dos processos de privatização teve qualquer avaliação político-diplomática. As decisões não foram tomadas em função de critérios dessa natureza.” Para Pedro Passos Coelho, os contactos de José Maria Ricciardi explicam-se noutro contexto, de “tática negocial”, mas não influíram nem no calendário nem na decisão do executivo. “Nunca senti nenhuma pressão”, sublinha.
Já quanto ao teor da ameaça feita por Ricciardi e comunicada a Passos Coelho por Ângelo Correia, garante que não guarda memória. “Não me lembro, sinceramente. Se aconteceu, não lhe atribuí credibilidade.”
O DN contactou também José Maria Ricciardi, que pediu para não ser citado neste trabalho. O ex-banqueiro é arguido num processo aberto em 2013 pelo Ministério Público e que se encontra, há mais de seis anos, em investigação pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Passos Coelho e Miguel Relvas já testemunharam nesse processo. Tentámos, através dos serviços da Procuradoria-Geral da República, saber em que fase se encontra a investigação judicial e quais são os arguidos, além de Ricciardi, suspeitos de terem cometido os crimes de “tráfico de influências, aproveitamento indevido de segredo e abuso de informação”. A resposta da PGR foi breve: “O inquérito com o NUIPC 195/13.3 TELSB encontra-se em investigação e está sujeito a segredo de justiça.”
Os factos principais desse inquérito foram revelados pela investigação do jornalista António José Vilela, da Sábado, no seu livro Apanhados – As Investigações Judiciais às Fortunas Escondidas dos Ricos e Poderosos (ed. Manuscrito, 2017). Ali, Vilela explica o que está em causa para a justiça: “Ricciardi tornou-se um dos principais suspeitos num intrincado caso que começou com a eventualidade de o banqueiro ter fugido ao fisco e que, com o passar do tempo e o acesso dos investigadores a diversa informação financeira e, sobretudo, a dezenas de horas de escutas telefónicas, levou as autoridades judiciais a suspeitar de que Ricciardi seria o pivô de um esquema em que o Estado português pudesse ter sido defraudado em 130 milhões de euros nas referidas privatizações [da EDP e da REN].”
Foi através dessas escutas telefónicas que os investigadores do DCIAP tomaram conhecimento de que o banqueiro do BESI poderia conhecer antecipadamente as ofertas dos candidatos concorrentes à compra de parte da EDP e da REN.
Dois dias antes do Conselho de Ministros que decidiu a privatização da REN, Ricciardi ligou a vários membros do governo dizendo que, se a privatização não avançasse, a China cortaria relações diplomáticas com Portugal e pararia todos os investimentos.
No caso da EDP, em que o BESI assessorava financeiramente a China Three Gorges, Ricciardi foi escutado a dizer ao seu primo Ricardo Salgado que soubera “lá dentro” o valor das propostas dos adversários, no último dia do concurso (9 de dezembro de 2011). Com isso, acreditam os investigadores, pôde baixar o preço proposto pelo seu cliente de 3,60 por ação para 3,45 . Essa baixa tem um valor exato: 117 095 067,30 . Esses foram os milhões que o Estado perdeu, caso a China Three Gorges tivesse mantido a sua proposta inicial, mais alta.
No caso da REN, os investigadores judiciais também suspeitam de uma baixa de dez cêntimos por ação na oferta da State Grid, gerida pelo BESI. Para corroborar essa tese há uma mensagem no processo. Foi enviada pelo chairman da Caixa BI, o outro grande banco de investimentos português à época, rival do BESI, e assessor do Estado na privatização. Nessa mensagem, Jorge Tomé fala, de forma cifrada, no preço das ações com Ricciardi: “O outro corredor está mais perto dos 2,6 metros, mas seria bom que o corredor principal atingisse os três metros. Abraço.”
Porém, neste caso, a informação dada por Jorge Tomé não parece ter sido sigilosa. Foi enviada no dia 24 de janeiro, quando esses valores eram públicos e os concorrentes apresentavam, apenas, propostas não vinculativas. É esse o argumento que nos avança Jorge Tomé, que também é arguido no mesmo processo que Ricciardi. O ex-banqueiro da Caixa explica que no caso da REN não havia sequer uma competição entre os valores dos concorrentes. A State Grid e a Oman Oil eram os únicos candidatos à compra, e não disputavam o mesmo lote de ações. A empresa chinesa candidatava-se a um lote maior (25%), enquanto a Oman Oil se propunha a comprar outros 15%. No final, ambas foram escolhidas para a venda direta, e os valores por ação são próximos dos das propostas não vinculativas. A State Grid pagou 2,9 por cada ação, a Oman Oil pagou menos, 2,56 .
Fontes bancárias explicam também que há um outro dado a ter em conta. Com aquela mensagem, Jorge Tomé podia apenas estar a sugerir que a proposta dos clientes do BESI devia ser mais alta, o que se justifica dado o seu papel de assessor financeiro do Estado, que estava a vender.
Para os investigadores judiciais, esta relação próxima entre bancos rivais (Caixa e BES) é um indício de que os concursos de privatização estavam sujeitos a regras informais, quando deveriam ser processos mais transparentes. E esta história está repleta de sinais dessa proximidade excessiva. Para ser escolhido como assessor financeiro da State Grid, na privatização da REN, Ricciardi tocou as várias portas. Mas antes tentara ser o assessor do Estado, isto é, estar do outro lado no mesmo negócio. Parece confuso, e ainda é mais. Numa auditoria às privatizações, o Tribunal de Contas considerou que o BESI nunca deveria ter sido admitido como consultor, porque isso representava uma situação de “conflito de interesses”: “O BESI prestou serviços de consultadoria financeira ao Estado (como avaliador) e posteriormente como consultor financeiro dos compradores (CTG e State Grid), o que contraria a alínea b) do ponto 11.2. das normas do concurso de pré-qualificação para prestação de assessoria financeira nos processos de privatização.”
Como já vimos, a Parpública, a empresa do Estado que lidou com os processos de privatização, não acautelou esse conflito de interesses. Deixou que o BESI fosse consultor dos compradores, mas não o contratou, apesar das solicitações nesse sentido, para consultor do Estado.
Isso não impediu, contudo, que o BESI fosse, de facto, um consultor informal do Estado – falando com ministros, levando-lhes resumos da matéria, contactando regularmente todos os intervenientes do outro lado do negócio, da Caixa à administração da REN, passando pelos seus acionistas minoritários. Ainda a State Grid não tinha decidido contratar o BESI para o negócio e já Ricciardi pedia a Miguel Horta e Costa para se reunir com Paulo Portas. Horta e Costa, o ex-líder da PT, era o número dois de Ricciardi no BESI.
Mas havia uma outra estratégia para convencer Paulo Portas, número dois do governo, de que a privatização da REN era necessária. Filipe de Botton, que não aceitou falar com o DN sobre este tema, era um dos acionistas minoritários da REN. No dia 8 de janeiro, depois de uma longa reunião com Portas, Botton fez um resumo a Ricciardi: o ministro dos Negócios Estrangeiros estava indeciso quanto à privatização. Botton argumentou com a urgência. A REN precisava de uma injeção de capital de 800 milhões, que o Estado não tinha. Ricciardi e Botton ficaram convencidos de que o governo não estava bem informado. Por isso, o empresário, presidente do Conselho da Diáspora Portuguesa, fez uma lista de pontos a usar com o governo.
E esse foi o ponto forte da estratégia dos que queriam a privatização. Mesmo que o contrato com a State Grid só tenha sido formalizado dias depois, Ricciardi ligava a jornalistas a explicar a vantagem da operação. Era preciso mostrar os pontos fortes da venda, porque era óbvio o risco: em 2011, a EDP e a REN tiveram o pior desempenho bolsista dos últimos dez anos, com a cotação em bolsa das suas ações a atingir mínimos históricos.
Mas a informação dos banqueiros também podia ter falhas. As dúvidas dos ministros, a terem existido, nunca motivaram qualquer debate no governo sobre o adiamento ou o cancelamento da privatização da REN. Aliás, semanas antes de isso gerar pânico no BESI, Passos Coelho recebeu um e-mail, enviado por Vítor Gaspar, em que Maria Luís Albuquerque detalhava o processo e propunha a manutenção do calendário inicial.
Baseados nessa dúvida aparentemente falsa sobre a intenção do governo, os homens do BESI começaram a identificar quem seriam os seus adversários no executivo. O primeiro nome a surgir é o do ex-secretário de Estado da Energia Henrique Gomes. O BESI queria a demissão do governante, que acabou por acontecer já depois da privatização, em março de 2012, dois meses depois de ter sido sugerida pelos banqueiros.
Henrique Gomes não conhecia este detalhe da sua história e reage com ironia: “Fico satisfeito. Isso é um bom sinal.” Já quanto à eficácia da sugestão dos banqueiros para que fosse demitido, não pode avaliar se foi determinante na sua saída (que aconteceu a seu pedido, depois de ter avaliado as condições que tinha para exercer o seu mandato). Terá o BESI feito pressão para que o governo aceitasse o pedido de demissão? “É muito possível…”
O que Henrique Gomes estranha é a convicção do BES de que seria um “inimigo” da privatização. “Nunca fui contra a privatização. A minha convicção na altura, que partia de uma premissa errada, era que não é a posse dos ativos que é importante, desde que haja uma regulação forte. Mas agora sei que não há condições em Portugal para uma regulação forte e por isso a posse é importante.”
Outro dos governantes que o BES temia era o colega do lado de Henrique Gomes, Sérgio Monteiro. Monteiro trabalhava juntamente com Maria Luís Albuquerque, que tinha a tutela das privatizações nas Finanças. No BESI, os termos usados para descrever a governante eram depreciativos.
Enquanto o banco justificava a sua consultoria enviando à State Grid a informação detalhada sobre todos os contactos que estabelecia com o primeiro-ministro ou com Paulo Portas, Ricciardi tentava saber junto de fontes do governo o que Maria Luís Albuquerque pensava. A ex-ministra das Finanças respondeu ao DN, por e-mail, preferindo não comentar este caso.
A tarde de 27 de janeiro, poucos dias antes da decisão final sobre a privatização, foi animada. Ricciardi soube que Maria Luís Albuquerque pedira ao embaixador chinês para se deslocar ao Ministério das Finanças. O banqueiro ficou em polvorosa. Porquê? Que significado teria a reunião? Significaria que o negócio iria parar? Ou que já estava ganho?
Para ter respostas, Ricciardi contactou Miguel Relvas. O ex-ministro não guarda nenhuma memória, mas tem uma convicção sobre este tipo de contactos: “Consideraria sempre mais ilegítimo o governo ceder do que o privado pressionar.”
Foi então, nas vésperas da decisão do negócio, que surgiu a mais forte e insólita pressão sobre o governo: as ameaças de corte de relações com a China, feitas por responsáveis do BESI, sem qualquer respaldo diplomático ou precedente na história. Na verdade, Pequim nunca cortara relações com nenhum país por razões económicas ou de negócios…
No dia 2 de fevereiro, o Conselho de Ministros aprovou a venda direta das ações da REN a ambos os compradores que estavam em jogo, a Oman Oil e a State Grid (que não aceitou responder às perguntas enviadas pelo DN). Assim que soube, Ricciardi mandou várias mensagens de agradecimento. Uma para Jorge Tomé, o seu rival da Caixa BI, outra para Miguel Relvas e seis para Pedro Passos Coelho. Em pouco menos de um mês – o contrato de assessoria do BESI com a State Grid foi assinado no dia 10 de janeiro de 2012, e a venda foi decidida no Conselho de Ministros de 2 de fevereiro desse ano – o banco recebeu um milhão e 400 mil euros pelos seus serviços financeiros.
“É verdade. Disseram-me isso. E avisei disso o primeiro-ministro. A China pode não investir e cortar a relação. Achei que a gravidade do que me estavam a dizer era tanta que lhes sugeri que alguém devia dizer isso ao governo português.”
ÂNGELO CORREIA “A privatização avançou sem nenhum cálculo político do governo. Nenhum dos processos de privatização teve qualquer avaliação político-diplomática. Nunca senti nenhuma pressão. Se aconteceu, não lhe atribuí credibilidade.”
PEDRO PASSOS COELHO