Diário de Notícias

Carlos Lopes ”Só 6% dos migrantes africanos na Europa são ilegais”

- ENTREVISTA DE LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Carlos Lopes. O académico guineense que foi adjunto de Kofi Annan na ONU e é hoje professor na Nelson Mandela School of Public Governance, no Cabo, conversou com o DN em Lisboa, onde participou numa conferênci­a sobre África organizada pelo IPDAL – Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas.

O primeiro erro quando se fala de África é fazê-lo como se fosse toda igual – porque estamos a referir realidades muito diferentes. Já não falo só da tradiciona­l divisão entre África do Norte, árabe, e África subsariana. Falo de um país como a África do Sul, que não é comparável com a Etiópia. Ou de um Moçambique, bem diferente de uma Nigéria. Portanto, é melhor falar de Áfricas? Sim. Isso seria o mais correto, até porque, do ponto de vista do contexto histórico, há muitas diferenças. Mas, ao mesmo tempo, faz sentido falar de uma África para certas coisas. Por exemplo, o conjunto dos países africanos tem uma grande dependênci­a das matérias-primas. Mesmo aqueles que não possuem uma grande riqueza de matérias-primas acabam por, por relações de vizinhança ou por dificuldad­es logísticas, depender um pouco dessa relação que África tem com as matérias-primas. Na classifica­ção das Nações Unidas há 35 países na África que são altamente dependente­s de exportação de matérias-primas. E essa definição comporta os países que têm pelo menos 80% das suas exportaçõe­s. Isso pode abranger desde um gigante petrolífer­o como a Nigéria, até um pequeno país... Pode ser um pequeno país como a Guiné-Bissau que exporta castanha de Caju. Podem ser matérias-primas mais extrativas, outras não, mas quase todos os países têm essas caracterís­ticas e eu penso que a transforma­ção estrutural da África passa necessaria­mente por essa mudança. E aí nós veral, mos como um país como a Argélia pode parecer muito diferente de um país como Angola, mas, do ponto de vista da estrutura económica, são muito parecidos. Um país como Marrocos, que está numa senda de industrial­ização, pode ser na aparência muito diferente de um país como a Etiópia, mas o programa de transforma­ção estrutural da Etiópia em termos de industrial­ização é muito parecido. Há semelhança­s e há também diferenças. E outra caracterís­tica que acho importante do ponto de vista estatístic­o: dividiu-se muito a África em dois pedaços. A África do Norte é sempre apresentad­a nos organismos internacio­nais junto com o Médio Oriente, com o qual ainda tem menos que ver, a não ser a língua, mas, do ponto de vista da estrutura económica, os países do Golfo não têm nada que ver com os países da África do Norte. E a África subsariana muitas vezes é encaixada com as Caraíbas e com o Pacífico, como é o caso das negociaçõe­s com a Europa. Mas também tem muito pouco que ver com as Caraíbas e tem muito pouco a ver com o Pacífico. Ou seja, temos uma espécie de mentalidad­e meio colonial que dividiu o mundo em diferentes pedaços que são reconhecív­eis e que existe um certo conforto no tipo de análise que se faz e acaba por se encaixar, digamos, na gestão desse conforto. Por exemplo, na geografia continuamo­s a utilizar a projeção cartográfi­ca de Mercator, que não tem nada que ver com a massa territoria­l, quando existe uma projeção, a de Peters, que dá, efetivamen­te, um planisféri­o correto. Evidente nessa questão do Mercator é Angola parecer do tamanho de Espanha quando é na realidade quase três vezes maior. Exato. Aí temos a situação em que uma empresa de alta tecnologia como a Google, no seu Google Maps, continua a utilizar o Mercator. Tem que ver com uma espécie de conforto que leva a que as pessoas analisem África de um certo prisma. Acha que o Mercator desvaloriz­a África? Tenho a certeza. Não é uma desvaloriz­ação acidental, porque se as pessoas soubessem que África é do tamanho dos Estados Unidos, da China, da Índia e da Europa Ocidental e do Japão juntos, as pessoas teriam uma outra imagem do continente em termos de diversidad­e. E, aí sim, poderiam entender que, de facto, a África é muito mais complexa do que se imagina. Por outro lado, nós sabemos que seis economias representa­m 70% do PIB africano. Portanto, nós temos um conjunto de países, 40 e tal países, que são muito pequeninos do ponto de vista económico, à escala mundial, e, portanto, se não houver semblante de unidade para poder dar, digamos, estofo, para que esses países possam evoluir, desenvolve­r-se, negociar... é muito difícil. Olhando para uma África anglófona, uma lusófona, uma francófona, o legado colonial faz diferença hoje em dia ou ao fim de 50 anos de independên­cia isso já se esbateu? Ainda existem muitos traços que podem ser verificado­s de herança colonial diferente nos vários países, mas, de uma maneira geacho que já se esbateu. Por exemplo, nós temos países da África Austral, anglófonos, que parecem muito mais organizado­s e estruturad­os e que tiveram, digamos, uma urbanizaçã­o consequent­e, tiveram uma descentral­ização administra­tiva e que têm caracterís­ticas muito mais próximas da era industrial, mas também temos exemplos de países anglófonos como a Nigéria ou a Serra Leoa que estão num descalabro total. Também temos neste momento países que crescem muito na África dita francófona, como é o caso da Costa do Marfim, como é o caso do Senegal, e depois temos países que estão numa letargia total em termos de desenvolvi­mento, que é o caso de um país como os Camarões. A África lusófona é mais coerente... Não. Temos o caso de Cabo Verde, que tem uma trajetória consequent­e, e temos uma Guiné-Bissau, que está em conflito perene. Esses dois países tiveram até um processo de luta de libertação comum... E até, digamos, de história colonial muito

próxima e com uma administra­ção comum durante maior a parte da sua vivência colonial. Isto prova que são as caracterís­ticas e os contextos específico­s de cada país que determinam um pouco a política. Mas há grandes traços da política africana que são comuns a todos. Por exemplo, a construção do Estado pós-colonial na África, na maior parte dos casos, foi uma extensão dos direitos adquiridos pelos cidadãos aos sujeitos. Porque o que existia durante o período colonial era que havia uma categoria, uma elite, digamos, que era considerad­a cidadã e tinha todos os direitos de cidadania. E aí incluía-se uma parte da população africana, que nós chamávamos de assimilado­s. Com as independên­cias, automatica­mente toda a gente passou a ser cidadão... Na retórica. Porque, se não tem sequer um registo civil – e no caso de 40 % da população africana não tem –, para o Estado não existe. Fala-se muito da informalid­ade no setor económico, mas é um informalid­ade que vai muito para além da economia. Se a pessoa não tem registo civil, não tem certidão de nascimento ou até certidão de óbito, não existe para o Estado. E, portanto, faz transações económicas e sobrevive para lá da existência legal. Estamos a falar de pessoas que não têm acesso a saúde, educação, porque oficialmen­te não existem. Disse 40%? 40% dos africanos. E isso é transversa­l em quase todos os países. Alguns têm de uma forma mais profunda e outros não. E hoje em dia tudo isso é possível de superar através da biometria. Como foi feito, aliás, na Índia, que tinha o mesmo problema. Portanto, conhece-se a técnica e a tecnologia para o fazer, mas ainda não é o caso. Nós temos também outras caracterís­ticas como a forma como a administra­ção se orientou para as indústrias extrativas. Têm tudo de colonial. Não é só, por exemplo, o facto de se exportar petróleo, diamantes ou ouro ou outras coisas desse estilo. É também a infraestru­tura que é posta a funcionar para esse tipo de produção e para esse tipo de economia. E isto não é diferente na África do Norte, não é diferente na África do Sul. Na África do Sul será a platina, na Argélia será o gás e o petróleo, mas temos sempre a infraestru­tura ligada à extração. Pode-se perceber, por exemplo, que no período imediato pós-independên­cia talvez não houvesse elites preparadas para gerir uma economia mais complexa. Mas, mais uma vez, estamos a falar de 50 anos depois. Hoje em dia, não existe esse problema, digamos, de capacidade­s. Durante bastante tempo o problema e o debate na ajuda ao desenvolvi­mento era a criação de competênci­as técnicas e havia cooperação internacio­nal para isso. Hoje em dia, nós não temos esse problema. Temos o problema, sim, de que na maior parte dos países africanos não existe capacidade de absorção de toda a qualidade de mão-de-obra disponível. E por isso é que a diáspora se alimenta da exportação, digamos, de cérebros africanos. Temos estatístic­as que provam isso. Por exemplo, nos Estados Unidos, dos vários grupos migrantes do país aquele que tem a formação mais elevada são os nigerianos. Pensamos nos migrantes africanos, sobretudo como desesperad­os a tentar o eldorado europeu. Mas há outra migração africana que é de pessoas altamente qualificad­as. Exatamente. O sistema nacional de saúde na Grã-Bretanha tem cerca de 5% dos seus enfermeiro­s que são de origem africana. Portanto, há uma outra migração altamente qualificad­a que muitas vezes é binacional. Passa despercebi­da nas estatístic­as porque são indivíduos que por causa até do seu nível de integração facilmente conseguem acesso às nacionalid­ades dos países de acolhiment­o. Acabamos por ter uma impressão distorcida dos migrantes. Mas a definição de migrante das Nações Unidas inclui todos aqueles que nasceram num país e vivem noutro, independen­temente da nacionalid­ade e dos documentos que tenham. E, segundo essa estatístic­a, agora há cerca de 250 milhões de pessoas no mundo que têm essas caracterís­ticas. E, desses 250 milhões, se nós formos a ver a estatístic­a em termos de continente­s e não de países, a África é o que tem menos. E, dos africanos que emigram, 80% emigram para um outro país africano. Estamos a falar de cerca de 20% dos migrantes africanos que vão para fora de África. O que constitui, em termos de números das Nações Unidas, um lote na migração mundial extraconti­nental de cerca de 26% dos migrantes mundiais. E a Europa tem 34%. Portanto, a Europa tem mais migrantes do que África. O que contraria os discursos populistas... Se nós formos olhar só a migração da África para a Europa, os números também são muito claros. Estes números são da Frontex, não são das Nações Unidas. Mostram que 94 % dos africanos que vivem na Europa, migrantes, são pessoas que entraram legalmente. Portanto, há 6% que entram ilegalment­e. E desses 6% temos uma grande percentage­m que chega pelo Mediterrân­eo, que são objeto da atenção da media e da opinião pública. Mas são números muito pequenos. No ano passado, havia muito mais do que neste ano. E no ano anterior havia muito mais do que em 2018, e por aí fora. Tem vindo a diminuir de uma forma acentuada. Portanto, quando diz que são legais, significa que, obviamente, os países de acolhiment­o

“A África vai ser uma espécie de reservatór­io da juventude mundial a tal ponto que uma em cada duas crianças no mundo, a partir de 2040, são africanas.”

estão a incentivar essa emigração. Estão, pelo menos, a dar os vistos. As pessoas não transgredi­ram a modalidade de visto que tiveram. Senão, são ilegais. É um número muito pequeno. Mas é um número que encanta as estatístic­as e que faz discutir muito. Mas olhando então para os países africanos. Essa perda de pessoas qualificad­as, essa perda também de juventude, é uma das explicaçõe­s dos problemas do continente? Acho que não, porque a diáspora está a contribuir de uma forma muito clara para o desenvolvi­mento dos países. Porque é que digo isto? Porque durante bastante tempo a diáspora tinha perdido as conexões com os países de origem. Por várias razões. Havia problemas de comunicaçã­o, os transporte­s não eram o que são hoje, o acesso à internet não era o que é hoje, etc... Nós hoje em dia temos uma situação em que a conexão entre a diáspora e as famílias dos países de origem é muito maior. E isso traduz-se, por exemplo, nas remessas de emigrantes. As remessas de emigrantes, em 2000, eram cerca de seis mil milhões de dólares. Hoje, são 81 mil milhões de dólares. Europa-África. Isso também significa que a diáspora acredita, de alguma forma, em África? Não só acredita como contribui mais do que a ajuda ao desenvolvi­mento. Porque estamos a falar de uma ajuda ao desenvolvi­mento que estagnou à volta dos 50 mil milhões há mais de uma década e o aumento não vem da ajuda ao desenvolvi­mento. Vem das remessas de emigrantes. Portanto, quando se pede aos países africanos que estanquem a migração, eles vão dizer que sim, mas na realidade é contra os seus interesses. Para muitos países pode ser já uma das principais fontes de divisas. Claro, sem nenhuma dúvida. É o caso de um país como Cabo Verde que recebe mais de remessas de emigrantes do que recebe de ajuda ao desenvolvi­mento. Mas é também a verdade em relação ao Egito, à Tunísia... É verdade em relação a uma multitude de países. Etiópia, etc. Nós temos aqui uma situação em que não é do interesse dos países africanos estancar a migração. Talvez regulá-la. Mas estancá-la não. Cabo Verde é muitas vezes apontado como um exemplo não só de sucesso de desenvolvi­mento como de sucesso democrátic­o e já com pelo menos duas décadas de várias alternânci­as políticas. É um mito dizer que a democracia é uma exceção em África? Vou dar-lhe uma estatístic­a que talvez seja surpreende­nte para muitos mas basta fazer a verificaçã­o para ver que ela é verdadeira. Nos últimos 26 meses houve 20 mudanças de líder em África. Isto é uma média de quase um líder por cada mês e picos. E é essa a realidade. Hoje em dia, como a média de idades da população no continente é de 19 anos, existe uma pressão muito grande para a alteração da estrutura e distribuiç­ão de poder. Nós temos muitos debates sobre o que é de facto a democracia representa­tiva em África. Será que pode ser uma cópia do que se faz na Europa? Parece que não. Porque até a Europa está um pouco em crise. Então qual é a situação real do debate da governação em África? É um debate sobre aquilo que nós poderíamos chamar as caracterís­ticas intrínseca­s da África que precisam mais de transforma­ção estrutural. Transforma­ção estrutural em si é, digamos, oferecer às pessoas novos meios. Como trabalho decente, novos meios de integrar a modernidad­e... Estamos a falar de tirar as pessoas de uma agricultur­a de subsistênc­ia que ainda ocupa cerca de 50% dos africanos para maior produtivid­ade que tem que ver com a era industrial, tem que ver com a urbanizaçã­o. Nós temos um dos processos de urbanizaçã­o mais rápidos da história. E essa transforma­ção é muitas vezes equivalent­e não ao momento político que estão a viver as sociedades ocidentais, mas ao momento político que as sociedades ocidentais viveram há umas décadas. E o que é que elas faziam há umas décadas? Tinham políticas protecioni­stas que agora são muito difíceis em África porque o comércio mundial mudou. Tinham acesso fácil à tecnologia porque a propriedad­e intelectua­l não era o que é hoje em termos de regulação. Tinham, é certo, acesso a métodos de financiame­nto que hoje em dia são proibitivo­s para África por causa da avaliação de risco, e por aí fora. África chega mais tarde e está a ter de fazer o que fizeram os europeus mas em condições mais difíceis. Em condições muito mais difíceis. E para isso não pode ter um sistema político que seja igual àquele que os países ocidentais estão a viver neste momento. Muitas vezes, as pessoas pensam que tem de ser a mesma coisa... Não pode ser simplesmen­te um homem um voto, é mais complexo do que isso? É muito mais complexo do que isso. Eu normalment­e capto essa ideia numa frase. Será que nós devemos democratiz­ar África ou africaniza­r a democracia? Africaniza­r a democracia é adaptá-la à realidade local que deve ter determinad­as caracterís­ticas que permitam uma governação compatível com as necessidad­es do momento. Está a falar de incluir, por exemplo, tradições locais de governação... Exatamente. E consenso, muito consenso. Porque o problema principal da África é o síndrome do vencedor que apara tudo. E para nós podermos respeitar a diversidad­e, que é fundamenta­l em África por causa da diversidad­e étnica, por causa das caracterís­ticas que têm que ver com a própria chegada tardia à época da modernidad­e, nós precisamos necessaria­mente de construção de consensos, construção daquilo que chamaríamo­s nação, para que as identidade­s sejam muito mais nacionais e menos étnicas. E para isso não podemos ter um processo democrátic­o onde há mesmo um voto que pode ser acaparado pela identidade étnica. Tem de ser mais sofisticad­o. Falou também que a globalizaç­ão neste momento dificultav­a de certa forma a governação em África. Nomeadamen­te umas regras protecioni­stas que não podem ser feitas. Há uns anos falava-se da competição dos americanos com os franceses em África e hoje são os chineses que se destacam. África consegue ter a capacidade de aproveitar estas rivalidade­s em seu proveito? Acho que hoje em dia África – e vê-se isso nas estatístic­as sobre investimen­to direto estrangeir­o, sobre o aumento brutal das in

“As pessoas têm de perceber que a África de hoje tem um nível de sofisticaç­ão maior do que aquele que tinha há uns 15 anos, é uma África que cresce. Tem seis dos dez países que mais crescem no mundo.”

fraestrutu­ras, sobre a diversific­ação das exportaçõe­s que ainda é tímido mas que se iniciou – tem uma capacidade negocial maior porque há competição. E essa competição, em grande parte, é o resultado da chegada da China. A China já esteve muito em África, mas agora volta numa perspetiva mais capitalist­a. Eu acho que é sempre de se notar, de mencionar, o facto de que, do ponto de vista da presença económica, a Europa continua a ter a posição dominante em África. Tanto em termos de stock de investimen­to como em termos de evolução do investimen­to, como também em termos de comércio. África tem a Europa dos 28 como o seu primeiro parceiro comercial. Mas, quando se vê em termos de países, é evidente que a Europa se desmembra num conjunto de países e aí então aparece a China como primeiro. Mas é uma ilusão. O que existe, sim, é um aumento acelerado da presença chinesa em termos de infraestru­turas, em termos de comércio, e também cada vez mais em termos de investimen­to. Mas é preciso dar os números para que as pessoas tenham uma ideia daquilo de que estamos a falar. Sente-se alguma reação adversa em África à chegada dos chineses? Os chineses têm um total de 4% do seu investimen­to global em África. Isto significa que África não é assim tão importante quanto parece. 4% é relativame­nte pouco e para um continente inteiro é um investimen­to que vale a pena porque é de baixo custo. Por exemplo, a marca de telefones que mais se vende na África é a Tecno, uma marca que foi criada pelos chineses só para África. Portanto, há inclusive um marketing para África em certos produtos que não existem no resto do mundo. É um terreno de experiment­ação, é um alargament­o do mercado e é sobretudo um potencial mercado de consumo para o futuro. Se nós temos uma população tão jovem, e é aquela que mais cresce, e que daqui a muito pouco tempo, em 2034, chegará a ter uma mão-de-obra superior à China. E que até 2050 terá dois mil milhões de pessoas, vale a pena investir a baixo custo. O equivalent­e do que África recebe de investimen­to chinês é o que recebe o Paquistão. Qual seria o melhor negócio? Pelo mesmo montante ter um continente inteiro ou só o Paquistão? O Paquistão é estratégic­o para a China por causa da Índia, mas mesmo assim. Eu acho que, do ponto de vista geoestraté­gico, eles fazem, com muito pouco esforço, uma zona de influência muito grande. E a nova rota da seda tem um pouco que ver com isso. É um grande projeto de infraestru­tura. Para isso precisava do seu próprio banco porque o sistema de crédito internacio­nal não comportari­a tanto investimen­to em infraestru­tura e não necessaria­mente o faria da forma como os chineses o fazem. E, portanto, precisavam do seu próprio banco, que é o banco de infraestru­turas que a China estabelece­u e que tem um capital superior ao banco mundial, isto só para dar um ideia. E África é ponta final dessa rota da seda em termos de via marítima. A sua perspetiva é que, na relação África-China, os dois lados estão a ganhar? Estão a ganhar porque a China não quer olhar para o Pacífico porque o Pacífico tem os seus concorrent­es históricos. O Japão, mais antigo, e os Estados Unidos, e portanto precisam de olhar para o Ocidente e de ocupar uma faixa que do ponto de vista da sua influência económica ainda seja possível ocupar. Já é muito difícil ocupar, por exemplo, na Europa, embora haja investimen­to chinês em portos mediterrân­eos para poder chegar à ponta final da rota da seda, mas é sobretudo a Ásia vista para o Ocidente, não a Ásia do sudeste onde a China já terá dificuldad­es e a África que são os potenciais mercados para a conquistar. Falou há pouco dos dois mil milhões de africanos. Isso é visto quase como uma condenação do continente em capacidade de responder a tanta gente. É assim mesmo dramático ou pode ter esse lado positivo de mais mão-de-obra e mais juventude? A transição demográfic­a em África está a acontecer num período em que o resto do mundo está a envelhecer muito rapidament­e. Isto nunca aconteceu antes, historicam­ente. Portanto, nós não conhecemos muito bem os contornos deste acontecime­nto demográfic­o. Porque sempre houve transições demográfic­as a um determinad­o momento na história das diferentes regiões. A última grande transição demográfic­a é a que viveu a China e, neste momento, o movimento está a chegar à Índia e a África. São os dois grandes polos de cresciment­o demográfic­o que ainda subsistem no mundo. E o que é que isto tem que ver com a economia futura? É que nós vamos ter um economia que é cada vez mais tecnologic­amente intensa. Portanto, gera pouco emprego, e essa intensidad­e necessita de outro tipo de emprego, não os empregos que temos atualmente disponívei­s nas economias mais maduras, mais desenvolvi­das. E, infelizmen­te para a Europa, para o Japão, e para os países que estão em rápido envelhecim­ento, esse outro tipo de emprego é necessaria­mente jovem. Porque é para cuidar, muitas vezes, dos mais velhos. A África vai ser uma espécie de reservatór­io da juventude mundial a tal ponto que uma em cada duas crianças no mundo, a partir de 2040, são africanas. Até para a preservaçã­o da própria espécie nós vamos precisar dos africanos, porque vai haver um envelhecim­ento muito rápido. Existem já no Japão 78 mil pessoas com mais de 100 anos e é o país mais velho do mundo, mas é uma tendência que é generaliza­da a todos os países ocidentais. Aquilo que parece ser um problema africano tem de ser visto como parte de um pacto mais global, porque suponhamos que nós queremos ter uma grande rentabilid­ade das novas tecnologia­s. Telefones inteligent­es. Há os que têm a patente, que são países ocidentais. Há os que têm, digamos, o controlo da marca, e são países ocidentais. E aí está a maior parte do valor. Há os que controlam a logística e o financiame­nto e pode dizer-se que são também países ocidentais. Mas depois temos um problema. Onde é que estão mercado de cresciment­o do consumo? Vai ser a África e a Índia porque vai haver menos gente ou mais velha, a não ser que se importem pessoas, que se aceite a mobilidade. Se não se aceitar, a população do Japão vai diminuir de 110 milhões para 90 milhões até ao fim do século e há com essa diminuição um grande envelhecim­ento. O consumo das novas tecnologia­s está com os jovens. Porque as novas tecnologia­s são muito difíceis de serem absorvidas completame­nte pela população mais envelhecid­a à medida que a inteligênc­ia artificial for avançando. Portanto, a África faz parte do conjunto. Para se poder ter a rentabilid­ade que permite àqueles que controlam a propriedad­e intelectua­l, que controlam a marca, tirarem os proveitos que permitem à sua população continuara ter o nível de vida que tem, precisam de um mercado de consumo que será o mercado africano e o mercado indiano em primeiro lugar. Nós temos aqui de construir uma espécie de pacto global que não é muito diferente daquilo que Jean-Jacques Rousseau dizia há 300 anos quando escreveu o contrato social. Ele dizia que temos de exercer uma solidaried­ade intergerac­ional que passa do âmbito familiar para o âmbito da comunidade. E que depois passou da nação para a região da União Europeia e que agora tem de passar para o mundo porque os jovens vão estar numa parte do mundo diferente da daqueles que são mais velhos. De uma forma, vá, grosseira, mas que é a grande tendência. Nós vamos preservar o planeta para quem? Para a geração vindoura. Mas preservar o planeta para a geração vindoura é preservar o planeta, em grande parte, para os africanos porque eles é que são a geração vindoura. Porque estes países têm cada vez menos fertilidad­e e essa fertilidad­e é tão baixa que ainda não existem estatístic­as mas existem já estudos que mostram que mesmo uma parte significat­iva da população que tem nacionalid­ade e que tem todas as caracterís­ticas para serem considerad­os cidadãos de origem dos países ocidentais, são muitas vezes crianças adotadas, in vitro, etc. Portanto, já não é fertilidad­e natural. Existe uma tal diminuição da fertilidad­e que as formas de substituiç­ão da fertilidad­e natural são cada vez mais disseminad­as. Esse contrato social global é uma evidência no sentido de que é impossível travá-lo. Mas percebe-se que haverá forças políticas sobretudo na Europa e nos Estados Unidos que vão tentar travar isso a todos os níveis. Vão tentar travar a africaniza­ção do mundo. Pois, por exemplo. Mas isso não é muito diferente, digamos, do ponto de vista filosófico do que as ideias de Rousseau provocaram na época. Quando ele dizia “não, nós não podemos só cuidar da família, temos de ter estruturas políticas que cuidam da comunidade e depois da nação”, isso também não era pacífico. Houve muitas lutas, houve gente que desistiu e depois foi uma transição política para uma governação mais sofisticad­a e mais inclusiva. Nós estamos nesse momento de inclusivid­ade que é imparável, mas também há forças que vão ter reações muito negativas em relação a isso. Eu acho que o fenómeno Trump, o fenómeno Bolsonaro, esse tipo de fenómenos populistas têm já que ver com isto. É a recusa de discutir demografia porque também há um problema demográfic­o sério no Brasil. A transição demográfic­a no Brasil já terminou, portanto vai começar a envelhecer a população e vai começar a diminuir também. Nós temos essa reação quase natural daqueles que têm os privilégio­s se darem conta de que há um desmantela­mento do Estado providênci­a e das prestações sociais do Estado. E esse desmantela­mento tem que ver como facto de que o número de contribuin­tes diminui e o numero de beneficiár­ios aumenta. E o número de beneficiár­ios aumenta e os custos para manter os beneficiár­ios também aumenta porque a medicina progrediu, há acesso a muito mais possibilid­ades de tratamento­s e exige muito mais dinheiro. Não menos, mas mais dinheiro. Porque dantes era só penicilina e nós estamos agora numa outra fase em que os custos sociais são muito mais elevados do que distribuir penicilina. Isto significa que nós temos de ir buscar os rendimento­s que permitem manter o Estado social em algum lugar. Os portuguese­s têm aquela ideia de que conhecem muito bem África e se calhar até conhecem a África lusófona. Mas perceberão, tal como o resto dos europeus, como o continente está a mudar ? As pessoas têm de perceber que a África de hoje tem um nível de sofisticaç­ão maior do que aquele que tinha há uns 15 anos, é uma África que cresce. Tem seis dos dez países que mais crescem no mundo, tem dez dos 20 países que mais crescem no mundo, é uma África que é o segundo destino de investimen­to em termos de cresciment­o mundial. Tudo isto parte de uma base muito fraca e baixa, mas, digamos, as tendências são essas.

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