Reportagem “Sou a mãe biológica e tive de adotar a minha filha”
Maternidade de substituição. A lei que permite usar a barriga de outra mulher para ter um filho tem andado às voltas. Quem espera, critica que só se focam na gestante, esquecendo os direitos dos pais biológicos e da criança. S. e B. tiveram dinheiro para ir a uma clínica na Ucrânia, que acompanha, atualmente, 15 casais portugueses.
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.é oficialmente minha filha desde esta tarde. Correu tudo muito bem no Tribunal de Família.” É a mensagem de felicidade que S. enviou ao DN nesta quarta-feira. Acabava de adotar a filha biológica, nascida na Ucrânia com recurso à barriga de outra mulher. S. e B. tiveram um filho prematuro que morreu ao 10.º dia. S. tem uma doença neurológica que a impediu de fazer uma segunda tentativa. “Aconteceu um duplo luto, perdemos o nosso filho e perdemos a possibilidade de ter filhos. S. [o filho] e M. têm precisamente a diferença de quatro anos.” Sem poder ter filhos e sem conseguir adotar em Portugal, recorreram ao estrangeiro. A criança nasceu em junho, ficou apenas com o nome do pai biológico. A mãe biológica adotou a filha do marido.
“Estar grávida virtualmente é uma sensação estranha, não controlamos nada, estamos sempre ansiosos. Quando recebemos as ecografias, é uma alegria enorme. Não a gerei, mas é a minha filha”, conta S. Prefere não divulgar nomes, sobretudo pela menina, que saberá a seu tempo a forma como foi gerada. “Não gosto de mentiras e M. tem direito a saber.”
S., de 39 anos, é médica. O marido, de 34, possui um stand de automóveis. A doença vitimou a sua mãe cedo e afeta toda a família . A forma de evitar que se transmita
aos filhos é recorrer à FIV (fertilização in vitro, união do ovócito com o espermatozoide em laboratório).
Iniciaram os tratamentos, nomeadamente a estimulação ovárica e S. teve de parar com a medicação para o seu problema neurológico. Engravidou à terceira tentativa, um ano e meio depois nasceu o bebé, um rapaz, prematuro e que morreu ao 10.º dia de vida. Por outro lado, tanto tempo sem a medicação agravou o estado da sua doença e S. corre risco de vida se voltar a engravidar.
Por isso, o casal inscreveu-se para adotar uma criança há quatro anos, mas o processo não evoluiu. Pensaram na gestação de substituição, animados pelo facto de ser criada uma lei em Portugal para esse efeito. Isto, há três anos. Todavia, passado este tempo continua a ser impossível. “Não sou uma atriz de Hollywood a quem apetece engravidar”, lamenta.
Voltas e reviravoltas da lei
Em 2016, aprovaram-se em Portugal alterações à lei da procriação medicamente assistida (PMA), alargando o âmbito da FIV a lésbicas e completando a gestação de substituição, entre outras mudanças. E, tal como acontece em muitos outros países, a gestante não tem relação genética com o bebé. Em geral, os óvulos são da mulher e os espermatozoides do homem que recorrem a este processo.
A primeira versão da lei aprovada pelos deputados, Marcelo Rebelo Sousa devolveu-a ao Parlamento. Depois o CDS pediu a sua fiscalização ao Tribunal Constitucional, que, em abril de 2018, vetou a doação anónima de gâmetas (óvulos e espermatozoides) tal como a decisão de impedir a gestante de alterar a decisão após iniciar os tratamentos médicos. Entendem que a mulher que cede o útero deve poder arrepender-se até a criança ser registada – até 20 dias após o nascimento.
O diploma regressou à Assembleia da República, com o BE a alargar a fase de arrependimento até ao registo da criança. O CDS, PSD e PCP votaram contra a alteração, voltou-se à versão inicial, e o Presidente da República reenviou a lei para o Constitucional, que a voltou a reprovar.
Tudo para ter um filho
S. e B. procuraram países onde poderiam recorrer à barriga de outra mulher antes de optarem pela Ucrânia. Rejeitaram os EUA por ter um custo mínimo de 120 mil euros; o Reino Unido por a grávida se poder arrepender após o nascimento do bebé; evitaram aqueles que lhes pareceram pouco fiáveis. Em 2017, encontraram a Successful Parents, a quem escreveram um e-mail que teve resposta no dia seguinte. A clínica acompanha, atualmente, 15 casais portugueses (ver entrevista).
S. é médica e avaliou as práticas que usavam, os currículos. E o casal avançou. Pagaram nove mil euros à cabeça “sem conhecer ninguém”, arriscaram. Gastaram 60 mil no total, incluindo as duas idas à Ucrânia e hotéis.
O nascimento de M. não resultou de uma gravidez tranquila. O casal fez a FIV em Portugal, analisaram os embriões e congelaram os que não tinham a doença de S. Em março de 2018, fez-se a transferência de dois embriões para a barriga de uma mulher ucraniana. A gravidez não resultou. Dois meses depois, tentaram novamente, aí houve gravidez, que deixou de evoluir às oito semanas. Em novembro, recorreram a uma terceira mulher, mas foi-lhe diagnosticada varicela e o processo interrompido. Em outubro, fizeram nova transferência de dois embriões. “Engravidámos de M.”
S. e o marido acompanharam a gravidez à distância, com uma ida ao país no início. E compraram as passagens de avião para assistir ao parto, apontando para as 38 semanas de gestação. Mas M. nasceu uma semana antes. Seguiram viagem logo que puderam.
Na Ucrânia, a partir do momento em que a crianças nasce a gestante não tem contacto com ela. São os pais biológicos que a recebem nos braços e normalmente a mãe biológica está na sala durante o parto. Ficam no hospital e têm de tratar dela enquanto estão internados, comprar leite, produtos de higiene, fraldas, etc. M. nasceu numa quinta-feira e teve alta no sábado. Seguiu-se a legalização.
O hospital entrega uma certidão de nascimento da criança em que consta o nome dos pais biológicos, com a qual a registam no notário. Completam a documentação para entregar no consulado português, o que levou seis semanas.
Inclui testes de ADN para garantir que são os pais biológicos, as suas certidões de casamento e de nascimento, relatório médico da mãe biológica explicando porque não pôde ter filhos, atestado de residência dos pais. Tudo tem de ser traduzido para ucraniano, depois para português, com as devidas custas processuais. Finalmente, é-lhes entregue um título de identidade para poderem viajar com a menina para Portugal.
S. e B. recorreram a quatro gestantes, que obrigatoriamente devem ter pelo menos um filho, e calculam que a maioria não resida na capital ucraniana. Quem gerou M. tem 25 anos, um filho e mora a uma distância de quatro horas de comboio de Kiev. Ficou alojada na cidade no último mês de gravidez. Em Portugal, o casal fez um Cartão