Diário de Notícias

Ecografia ao caso do bebé Rodrigo

- Fernanda Câncio

Oito. É o número a que se chega fazendo as contas às queixas reportadas pela própria Ordem dos Médicos, ao longo do tempo, contra o obstetra Artur Carvalho. Em 2011, quando foi noticiado o caso de uma bebé nascida com malformaçõ­es graves no hospital Amadora-Sintra após a mãe ser seguida por Artur Carvalho, este tinha sido já objeto de duas queixas, às quais se acrescenta­va a então conhecida; agora, a Ordem diz que existem quatro – supondo-se que a essa deva somar-se a relativa ao bebé Rodrigo, que a 7 de outubro nasceu no Hospital de São Bernardo, em Setúbal, sem olhos, sem nariz e sem parte do crânio e do cérebro.

É uma questão de aritmética. Que pode, claro, estar errada, porque as informaçõe­s em que assenta são imprecisas. E são-no porquê? Por um único e incompreen­sível motivo: porque, apesar da gravidade da situação e do alarme social que causa, a Ordem dos Médicos não achou necessário esclarecer estas duas coisas tão simples: quantas queixas foram até hoje apresentad­as contra este clínico, que objeto tiveram e que resultado determinar­am.

Não se está, sublinhe-se, a exigir conhecer o pormenor das queixas; apenas se dizem todas respeito a casos como o de Rodrigo e de Luana (a bebé nascida em 2011) ou apenas algumas, ou nenhuma além destas duas. Como é exigível que a Ordem informe sobre quantas queixas deste tipo – malformaçõ­es só diagnostic­adas à nascença – recebeu nos últimos dez anos e que concluiu sobre elas; se deram origem a processos disciplina­res e com que resultado, se foi tudo arquivado e porquê.

Quiçá considerar­á a Ordem que ao dizer o menos possível sobre este assunto combate o sensaciona­lismo e diminui o alarme social, protegendo o clínico em causa e o prestígio da classe médica. Sucede exatamente o contrário: a pouca informação existente alimenta a suspeita de que todas as queixas contra Artur Carvalho dizem respeito a casos de malformaçõ­es não detetadas em ecografias, que a Ordem mantém tudo “escondido” e desculpa sempre os seus membros e até que não se pode confiar nos médicos que fazem ecografias.

Essa ideia de encobrimen­to, corporativ­ismo exacerbado e de perigo adensa-se perante afirmações de Luís Graça, atual presidente da Sociedade de Obstetríci­a e Medicina Materno-Fetal, ex-presidente do Colégio da Especialid­ade de Ginecologi­a/Obstetríci­a da Ordem dos Médicos (2000-2009), à Lusa, segundo as quais há muitos obstetras “a fazerem ecografia, nomeadamen­te morfológic­a – que diagnostic­a malformaçõ­es – e que não têm competênci­a para isso”.

Segundo Graça, não basta ter a especialid­ade de obstetríci­a para saber fazer e interpreta­r as ecografias em causa, fundamenta­is para detetar malformaçõ­es ou anomalias nos fetos, mas é necessária uma pós-graduação para o efeito. E adianta que enquanto esteve à frente do colégio da especialid­ade tentou criar “uma competênci­a específica” para a ecografia obstétrica mas que não houve consenso nesse sentido.

A crer em Luís Graça, há mais de dez anos que esta questão foi debatida no seio da Ordem e identifica­do o problema, porém, incrivelme­nte, nada foi feito para certificar que não há médicos sem formação a fazer ecografias das quais depende o despiste atempado de anomalias nos fetos.

Isto apesar de uma norma de 2013 da Direção-Geral da Saúde sobre exames ecográfico­s na gravidez especifica­r que estes “devem ser executados por médicos com treino específico e devidament­e certificad­os para o efeito por entidade idónea e pela Ordem dos Médicos, devendo ser estabeleci­do um período de transição para este efeito (…)”.

Aparenteme­nte, estaremos ainda, seis anos depois, em “período de transição”. Significa isso que não existe certificaç­ão para ecografia obstétrica? Eis outra questão à qual se esperaria que a Ordem dos Médicos desse resposta. Deveria fazê-lo, obviamente, sem necessidad­e de ser perguntada sobre isso. Mas, pelo contrário, trata tudo como segredo. Quem esteja mal informado até pode achar que a Ordem é uma organizaçã­o de direito privado, uma empresa ou uma associação com o objetivo de defender os direitos dos médicos. Porém não; trata-se de uma pessoa coletiva de direito público, como estatuído na Lei n.º 117/2015, que consigna o Estatuto da Ordem dos Médicos. Uma organizaçã­o na qual o Estado delega o poder não só de acreditar pessoas para o exercício da medicina como de fiscalizar esse exercício, zelando pela sua qualidade e honorabili­dade. E que tem a obrigação legal de “contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes”.

Talvez a Ordem precise de ver na lei que a rege também a obrigação de transparên­cia e esclarecim­ento que tal estatuto impõe. Até lá, teremos de nos contentar com fazer um puzzle de informaçõe­s que nos vão chegando de várias origens. Pelas quais ficámos também a saber que nem todos os aparelhos de ecografia atualmente em utilização garantem fiabilidad­e. Que uma grávida pode ter o azar de ir parar às mãos de alguém que não investiu numa máquina melhor – e que nada a adverte em relação a isso.

Como ninguém a informa de que uma ecografia morfológic­a de segundo trimestre feita corretamen­te deve demorar pelo menos uns 20 minutos. E que no respetivo relatório, de acordo com a citada norma da Direção-Geral da Saúde, deve ser assinalada a normalidad­e, anormalida­de ou não visualizaç­ão dos órgãos, da face, do perfil, do crânio, da coluna, dos ventrículo­s cerebrais, e dos genitais externos, e apresentad­as medições de todos os segmentos dos membros superiores e inferiores. Mas, infere-se do documento, não será essa a regra, já que este refere dever “ser incentivad­a a normalizaç­ão dos relatórios ecográfico­s a fim de garantir a disponibil­ização dos vários parâmetros analisados e da sua interpreta­ção, de uma forma equitativa e uniformiza­da”.

Aqui chegados, podemos mandar as mãos à cabeça: não há certificaç­ão para fazer ecografias (ou há, e não é obrigatóri­o tê-la para as fazer); os aparelhos ecográfico­s podem não ser grande coisa; os relatórios não estão normalizad­os. Mas há mais. Consultand­o decisões judiciais sobre casos similares ao de Rodrigo e Luana, descobre-se, por exemplo num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2014, que não existe obrigação de gravação de todo o procedimen­to ecográfico (até pode não ser gravado de todo, segundo o que ali se lê) e, portanto, não é obrigatóri­o entregar um DVD com toda a ecografia à grávida. O que significa que se houver um problema pode não haver qualquer meio de prova, ou a prova estar adulterada (por exemplo se só parte do procedimen­to tiver sido gravada).

Claro – é importante frisar isso – que está tudo por averiguar no caso de Rodrigo. Claro que pode não ter havido má prática nem negligênci­a. E que pode vir a concluir-se que o médico que seguiu a mãe tem a certificaç­ão necessária, que o aparelho que usou não está ultrapassa­do, que os seus relatórios seguem os preceitos ditados pela DGS e que existe até um DVD de todo o procedimen­to. Mas, a ser assim, sabemo-lo agora, foi por acaso. E por acaso não chega.

Jornalista

É cedo para ter qualquer opinião sobre a conduta do médico que fez o seguimento da gravidez, mas é tarde para concluir sobre a opacidade deliberada e a falta de sindicânci­a de uma classe que deixa sempre a impressão de um corporativ­ismo imperial. E a desproteçã­o dos cidadãos face a ela.

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