Diário de Notícias

Entrevista a Andrew Roberts “Boris tem de apanhar os cacos de três anos de liderança abominável de Theresa May”

- CÉSAR AVÓ

O historiado­r londrino encerra um capítulo de 30 anos e cinco livros sobre Winston Churchill e o seu tempo com

Churchill – Caminhando com o Destino. Uma biografia que Henry Kissinger considera “definitiva”. Conservado­r, Roberts é também conhecido pelos seus comentário­s politicame­nte incorretos.

Há 1010 biografias de Winston Spencer-Churchill se contarmos com esta. Mas Andrew Spencer teve acesso a fontes que nenhum outro historiado­r consultara antes, como os diários do rei Jorge VI, disponibil­izados por Isabel II. O resultado é um cartapácio de mais de mil páginas que dá a conhecer ao pormenor todas as dimensões de um homem com tantos falhanços e contradiçõ­es como vitórias e cujo legado é alvo quer de críticas quer de reverência. “Em cada uma das mil páginas há um elemento que não existe nas outras biografias”, garante o autor de 56 anos.

Churchill foi um defensor dos Estados Unidos da Europa, mas com o Reino Unido de fora. De certa forma está de acordo com o seu biografado porque votou no referendo pela saída da União Europeia. Porquê?

Estou contente com o acordo anunciado, partindo do princípio que será aprovado na Câmara dos Comuns. Queremos fazer as nossas próprias leis. Anularam 66 leis britânicas desde 1996. Não quero fazer parte de um projeto federalist­a. É ótimo para Portugal, Espanha e Itália, que têm estado bem no euro. Nós não queremos. Historicam­ente temos um desenvolvi­mento separado. Temos ligações com os EUA e com os países da Commonweal­th, ao contrário de muitos países europeus. E tentar ignorar um voto democrátic­o e subvertê-lo, como o Parlamento fez nos últimos três anos, é profundame­nte não democrátic­o.

Os europeísta­s alegam que o referendo não era vinculativ­o.

Todos os partidos disseram que iriam respeitar o voto. Assim que perderam disseram que não era vinculativ­o. E mesmo que não seja, isso não significa que moralmente não devam fazer o que a maioria diz. É a base da democracia, se não vamos respeitar a maioria caímos no caos da anarquia.

Os referendos podem ser armas perigosas. A Escócia e a Irlanda podem querer fazê-los e separarem-se do Reino Unido.

A Escócia já o fez. Quando se perde há que respeitar a vontade do povo, não se pode continuar a fazê-los até obter por fim o resultado pretendido. Quanto à Irlanda, não me importava que este acordo fosse referendad­o. Creio que iria passar.

Há notícias que dão conta de ligações entre os russos e alguns ativistas do Brexit. Não teme que os russos influencie­m o sistema político britânico?

Li essas notícias e acho que são bastante dececionan­tes. Não creio que haja provas que tenham interferid­o no referendo do Brexit ou até na eleição presidenci­al norte-americana de 2016. O desejo de o fazer não é o mesmo do que a capacidade de fazê-lo. E a capacidade de o fazer não é o mesmo do que tê-lo feito. Há grandes diferenças. Obviamente é algo a que devemos estar atentos. Será interessan­te se os russos tentarem influencia­r as eleições americanas de 2020, mas não sei de que forma. Não creio que possam continuar a pensar que o presidente Trump vá ser um peão deles.

Churchill tinha princípios éticos sólidos. Vê hoje nos conservado­res quem os tenha?

Tinha, mas por exemplo nem tanto no que respeita à moral sexual. A esse propósito há uma boa frase de David Lloyd George, que foi primeiro-ministro durante a I Guerra Mundial. Quando foi à conferênci­a de paz em Versalhes perguntara­m-lhe se iria levar a mulher, ao que respondeu: “Você leva sandes para um banquete?” Penso que a

pergunta é dirigida a Boris Johnson e acho que foi bom que ele tenha escrito um livro sobre Churchill [O Fator Churchill – Como Um Homem Fez História]. De certeza que ele aprendeu a ousar com o seu líder político. Penso que em primeiro lugar Churchill não nos meteria no Brexit, de uma ou de outra forma, mas não acho que Boris seja uma figura imoral. Exceto na esfera sexual.

O que faria Churchill de diferente em relação ao Brexit?

Uma vez ouvido o povo britânico ele teria feito o necessário para cumprir esse objetivo. Ele teria sido um líder muito mais marcante do que Theresa May foi nos últimos três anos. Foram três anos perdidos, que dividiram o país e que nos tornaram em párias virtuais na Europa, além dos danos causados no Partido Conservado­r. Um líder marcante não teria permitido isto e isso é uma das coisas que Boris tem de fazer, tem de apanhar os cacos de três anos de liderança abominável de Theresa May.

Responsabi­liza Theresa May em exclusivo?

Não, claro, é culpa de todos os que declararam que iriam obedecer à vontade popular e ao invés passaram três anos a subvertê-la.

Churchill teve uma grande coragem física e moral. Consegue dizer no que foi mais corajoso?

A sua coragem moral começou em não mudar de mensagem nos anos 30, quando era a única figura a falar contra Hitler e os nazis. A sua coragem física é impression­ante. Lutou em cinco campanhas em quatro continente­s. Dizia que não havia nada mais excitante do que ser alvejado sem consequênc­ias, o que lhe aconteceu e muito. Fez parte da última grande batalha de cavalaria do Império Britânico, em Omdurmã [Sudão], onde foram mortos 25% dos britânicos. No ano seguinte foi emboscado na guerra dos Boers, na África do Sul. Depois de um terço do regimento ter sido morto ou ferido ele escapou-se do campo de prisioneir­os, tendo percorrido mais de 300 quilómetro­s em território inimigo. Durante a II Guerra, ia ao terraço do Ministério do Ar ver os bombardeam­entos alemães. São exemplos de heroísmo, mas a sua coragem moral era igual à sua coragem física.

Churchill é um símbolo de resiliênci­a. Nunca deu sinais de desistir?

Nunca. Só numa ocasião disse ao seu conselheir­o militar mais próximo, Pug Ismay, que temia perder a guerra. Em junho de 1940, Ismay disse-lhe que dentro de três meses tudo iria estar melhor, ao que respondeu: “Daqui a três meses estaremos mortos.” De resto, parte da sua extraordin­ária liderança era mostrar confiança na vitória, o que ele não podia ter sentido durante todo o tempo. A Rússia estava do lado da Alemanha, a França estava KO, os EUA não queriam envolver-se na guerra, as únicas regiões da Europa que não tinham sido invadidas pelos nazis eram neutrais. Era impossível ganhar a guerra, mas ele não esmorecia.

Em termos políticos era conservado­r ou liberal?

Era um tory democrata, o que era a etiqueta política do pai. Foi deputado durante 20 anos como liberal, mas as medidas que defendia eram as que seriam aprovadas pelos conservado­res democratas, de reforma social, etc. Era o que Margaret Thatcher costumava chamar de tory wet, ficava no extremo liberal do Partido Conservado­r. Quando os conservado­res deixaram de apoiar o comércio livre passou-se para os liberais. Quando voltaram atrás, 20 anos depois, Churchill voltou para os conservado­res. Tinha uma frase para o tema: “Qualquer um pode trair, mas é preciso uma certa habilidade para voltar a trair.”

O sentido de destino de Churchill é algo que destaca, a começar pelo título. Terá alguma relação com a devoção que sentia pelo pai?

Tinha uma relação muito complicada com o pai. O seu pai era um homem brilhante, mas uma distante e distinta figura aristocrát­ica que lhe escreveu cartas que pai algum deveria escrever, terríveis cartas de desprezo e desdém. Winston Churchill não permitiu que isso o afetasse psicologic­amente. Quando o pai morreu com 45 anos ele tinha 20, foi ter com os amigos do pai e escreveu a sua biografia. Mais tarde chamou a um dos filhos Randolph, adotou as opiniões políticas e o estilo político do pai. Penso que se pode ver o resto da vida de Churchill como uma tentativa para impression­ar a sombra do seu pai morto. Em 1947 acreditou ter tido um encontro com o fantasma do pai e manteve uma conversa de horas. E nessa conversa nunca disse ao pai o papel fundamenta­l que teve na II Guerra Mundial.

Enquanto escreveu este livro seguiu um ritual que envolvia beber Red Bull e escrever a partir das cinco da manhã.

[Gargalhada] Cada escritor tem o seu método. O meu é um pouco estranho, concedo, mas funciona. Acordo às 05.00 e de chinelos e pijama escrevo durante quatro horas sem ser incomodado. Depois lavo-me, visto-me e volto ao trabalho. Depois de almoço ou faço uma sesta de uma hora e acordo revigorado, como Churchill fazia, ou se estou a meio de um capítulo e estou concentrad­o e quero continuar bebo uma lata dessa bebida com cafeína que me mantém em agitação durante o resto da tarde. A minha mulher contou-me que durante o capítulo da Batalha dos Dardanelos eu não me mudei durante três dias. Terá sido pouco higiénico e bastante malcheiros­o. Consigo escrever 5000 palavras por dia neste regime. O livro foi escrito em cem dias.

Tem a ajuda de um assistente?

Não. Nunca. Se tivesse um conseguiri­a escrever livros de forma mais rápida. Mas se o assistente de pesquisa for preguiçoso então poderá recorrer ao plágio e logo eu serei acusado de plágio. É o pior que pode acontecer a um historiado­r.

E as suas opiniões controvers­as? Não teme que o apoio à invasão do Iraque por George W. Bush, por exemplo, possa influencia­r a opinião dos leitores sobre a razoabilid­ade da sua abordagem à história?

Penso que as minhas opiniões são muito controvers­as, mas razoáveis e objetivas. Há uma enorme diferença entre história e jornalismo, uma enorme diferença entre escrever sobre o passado e escrever sobre o que acontece em 2003. E também acho importante manter as opiniões políticas fora da história.

E, já agora, mantém a mesma opinião sobre a invasão do Iraque?

Sim, foi a coisa certa a fazer. Saddam Hussein tinha de ser deposto e creio que isso foi feito com o mínimo de força dos norte-americanos e da coligação. Penso que foi muito triste que o presidente Obama tenha retirado, o que deu espaço aos iranianos para dominarem aquele pobre país.

“Churchill tinha uma relação muito complicada com o pai, que era um homem brilhante, mas distante.”

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CHURCHILL – CAMINHANDO COM O DESTINO 1160 páginas Texto Editores 41,90 euros

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