Cuidado com a máquina multiplicadora de países
Brexit e Catalunha. Desunir tem mais força do que unir, mais apelo? Serão excecionais esses suíços de quatro línguas que souberam construir um país?
Não vale a pena procurar a Finlândia, a Polónia, a Albânia, a Eslovénia, nem sequer a Noruega ou a Irlanda com cores próprias. Quem olhar para um mapa da Europa datado de 1900 vai ter dificuldade em contar 20 países independentes, e de certeza não encontrará 24, que será o número daqueles que participarão no próximo ano na fase final no Europeu de Futebol. Hoje o continente conta com mais de meia centena de países, com a última vaga de novidades a ter surgido na década de 1990, quando três federações comunistas implodiram, uma delas, a Jugoslávia, de forma violenta, outra, a Checoslováquia, por via pacífica, e a terceira, a gigantesca União Soviética, de forma híbrida, com conflitos nacionalistas mais ou menos localizados, alguns a perdurar até hoje. Claro, houve também em 1990 a exceção da reunificação alemã, dois países que voltaram a ser um.
Significa isto que continuarão a nascer novos países na Europa? Que as tentações separatistas da Catalunha e da Escócia, os casos mais mediáticos dos anos recentes, estão destinadas a ser bem-sucedidas? Responder sim seria especular, ignorar a força (e o apelo) do centro num e noutro caso, tal como responder não seria arriscar demasiado, tanta mudança o mapa mundial tem conhecido nos últimos cem anos, nos últimos 70, nos últimos 30 até. A Sociedade das Nações teve 42 membros fundadores em 1920; e as Nações Unidas nasceram em 1945 com 51 países, em 1961 eram já cem, os 150 foram atingidos em 1978, hoje conta com 193.
É possível identificar os grandes movimentos de nascimento de países com as épocas de fim de impérios. Aconteceu em 1918 com o fim da Primeira Guerra Mundial, quando a desintegração dos impérios austro-húngaro, alemão, russo e otomano deu novo rosto à Europa de Leste e ao Médio Oriente. Aconteceu de novo a seguir à Segunda Guerra Mundial na Ásia e, num segundo momento, já na década de 1960, na África quando os impérios coloniais britânico e francês se mostraram impossíveis de perpetuar. E o fim tardio do colonialismo português deu ainda mais cinco países a África no espaço de pouco mais de um ano em 1974-1975.
Para os mais céticos sobre este movimento que parece imparável de multiplicação dos países – tivemos já neste século Timor-Leste em 2002, Montenegro em 2006, Sudão do Sul em 2011 e de forma ainda por oficializar na ONU o Kosovo em 2008 – admita-se que houve épocas em que a história corria em sentido contrário. Basta recuar até ao século XIX e ver desaparecer mais de 20 Estados alemães, incluindo reinos como a Prússia, a Saxónia e a Baviera, para dar origem à moderna Alemanha. Processo idêntico se deu em Itália, com a unificação liderada pela Casa de Saboia. Indo mais para trás ainda, é possível ver a França a absorver a Borgonha ou a Bretanha, a Inglaterra e a Escócia a unirem-se e a moderna Espanha a resultar da fusão oficial do reino de Castela e da coroa de Aragão, juntos pelo menos desde o tempo dos Reis Católicos.
Ora, a segunda metade do século XX, mesmo nessa Europa que de repente se foi multiplicando em países, também registou um movimento inovador no sentido da unificação, primeiro de uma forma tímida, limitada a seis países e à cooperação económica, depois de forma cada vez mais alargada – vai hoje do Atlântico aos Cárpatos – e com muito já de interligação política. Falo, claro, da União Europeia, nascida em 1957 como CEE ou Comunidade Económica Europeia, e mesmo esta evolução de nome é bem reveladora.
Que a União Europeia, formada por Estados com rivalidades bem antigas, tenha sido capaz de se afirmar não só é extraordinário como inspira noutros continentes projetos como o Mercosul, a CEDEAO ou a ASEAN, ainda limitados à cooperação económica. E essa afirmação, que passa pela construção de um espaço de prosperidade, de paz e de liberdade, de ausência de fronteiras mesmo, tem até agora mostrado ter todas as condições para travar a emergência tanto de velhos nacionalismos como de novos tribalismos. Quando a Escócia fez um referendo independentista, negociado com Londres, foi a incógnita da futura relação com a União Europeia uma das razões para a vitória do não. E certamente a incapacidade do separatismo catalão, em confronto aberto com Madrid, de ganhar mais apoios do que a sua base tradicional tem muito que ver com a reação adversa da União Europeia ao projeto de dividir Espanha.
Ora, é aqui que o Brexit surge como um perigo, de consequências muito para além de questões como o backstop irlandês ou a futura relação alfandegária entre o Reino Unido e os 27 restantes. Nesta semana, a coincidência das notícias de um possível acordo sobre a saída dos britânicos da União Europeia e do desacordo evidente entre os que querem uma Espanha unida e a corrente separatista na Catalunha deve fazer-nos pensar. Desunir tem mais força do que unir? Serão excecionais esses suíços de quatro línguas que construíram um país?
Sem entrar na defesa da quimera de um governo mundial – que a ONU não é nem tem condições para ser –, não é óbvio que só a cooperação transnacional poderá trazer respostas para desafios imediatos como as migrações ou certos a médio prazo como o aquecimento global? Não é óbvio que o modelo da União Europeia, que tem beneficiado todos os membros, incluindo o Reino Unido, de forma cientificamente comprovável, deveria estar a inspirar mais as populações do que as revoltas nacionalistas do início do século XX? Excluo, claro, povos oprimidos, minorias sem direitos, territórios negligenciados, gente desrespeitada por ditaduras. Aí, por muito forte que seja o Estado opressor e improvável a independência, entende-se a luta. No mínimo, devolverá a dignidade a quem tem pouco ou nada a perder.
Não é o caso da Escócia ou da Catalunha. A primeira delas até tem uma seleção de futebol a lutar por um lugar no tal campeonato em 2020.