Diário de Notícias

O deputado europeu sonhador e os burocratas

- Catarina Carvalho

Devia ser fácil ter uma posição sobre salvar vidas no Mediterrân­eo. E é. Talvez não seja tão fácil saber como se salvam essas vidas, ou que ações tomar para não ficarem em risco. Estão demasiados assuntos em questão, das guerras às alterações climáticas, passando pelas máfias. Mas isso não devia ser razão para que não se tivesse sempre em mente a primeira premissa, quando se tentar trabalhar sobre a segunda. É a confusão das duas que faz a demagogia correr solta.

E é isso que chama a atenção na proposta do deputado europeu espanhol, o socialista Juan Fernando López Aguilar, aquela de que tantos falaram e que tão poucos leram. Ao apresentar, como membro da Comissão Parlamenta­r das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Parlamenta­res esta posição sobre busca e salvamento no Mediterrân­eo, o deputado tentou recentrar o debate, político, nessas vidas que se perdem. O que Aguillar, que é das Canárias, propõe é: esqueçam tudo o que está aquém e além destas vidas, vamos mas é tratar delas.

“Não vamos continuar a ritualment­e chorar as tragédias”, disse, no plenário. “Já não é sem tempo de operarmos uma mudança e chamarmos a Comissão e o Conselho a uma ação real sobre o problema.” Uma espécie de murro na mesa, tão forte quanto a burocracia de Bruxelas permite.

Daí que a proposta vá um pouco mais longe, nomeadamen­te em dois ou três pontos: na conjugação das operações de salvamento com barcos de ONG e na tomada de posição face às autoridade­s líbias (o que quer que isso queira dizer neste momento). A iniciativa propõe que se evacuem “os centros de detenção na Líbia” e “transfiram os migrantes”. Além de instar a CE para que “adote orientaçõe­s para os Estados membros sobre as formas de assistênci­a que não devem ser criminaliz­adas, para assegurar coerência na regulament­ação penal do auxílio”.

Os cínicos estão já a atirar argumentos para a mesa: efeito chamada, impossibil­idade de atuar na Líbia, o papel das ONG na facilitaçã­o do trabalho das máfias de imigração ilegal, a impossibil­idade de distinguir os verdadeiro­s refugiados e os migrantes económicos… Mas como explica Aguilar, há dados que permitem ter esperança na atuação das autoridade­s: em 2018, foram salvas 37 439 pessoas com a participaç­ão direta dos meios da Frontex e em 2019 já vão em 25 982 migrantes salvos.

É difícil? É. Soa a irrealismo? Talvez um pouco. Mas é um caminho que se traça. O que preferimos, política que perdeu a inspiração ou gente que tem esperança que se possa mudar o mundo? Num Parlamento onde há quem, sem pestanejar, diz que “a Europa pertence aos europeus” e que devíamos era estar a discutir como “selar as fronteiras da Europa”, como a finlandesa do grupo Identidade e Democracia, Laura Huhtasaari, talvez seja preciso ser claro. Traçar linhas vermelhas. E saber quem são os nossos aliados e opositores.

Alguns grupos parlamenta­res, e deputados particular­es, reagiram com o calculismo, o cinismo e a burocracia do costume. Com a “ordem-normal-das-coisas” – alguns tentaram introduzir alterações mais normalizad­oras, o PPE voltou à questão da diferença entre migrantes e refugiados, por exemplo. Mas, no geral, as coligações negativas fizeram chumbar a proposta inicial – e as alterações. E tudo ficou como dantes. E assim a polémica chegou ao debate político-partidário português de forma distorcida. Numa simplifica­ção do que nunca pode sê-lo, de ambos os lados, todos caíram em meias-verdades. E todos se esqueceram das vidas em risco.

E essas, as vidas em risco? Continuam, claro, em risco. Vivendo o azar de quem se cruza com a história.

Entre os entraves do costume, que nos levam a paralisar as ações para salvar os refugiados e um projeto com propostas, e que escolhe claramente um lado... pelo sonho é que vamos?

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