Diário de Notícias

O que é bom para a Apollo e para a Fidelidade é bom para Portugal?

- por Pedro Marques Lopes

O Estado deve dar às empresas as condições para que possam funcionar da melhor maneira e em função da prossecuçã­o do bem comum que se reconhece à atividade privada, mas o que vemos muitas vezes é a inversão total deste princípio. Temos empresas que mandam mais do que qualquer poder político.

Onegócio foi anunciado em abril do ano passado. A Fidelidade vendeu 277 imóveis a uma empresa de nome Apollo. Esta empresa ou fundo ou o que quer que seja gere cerca de 270 mil milhões de dólares em participaç­ões, imobiliári­o, bancos, etc., etc. Segundo os jornalista­s que acompanham este, digamos, projeto, não está interessad­a em criar ou em desenvolve­r empresas, compra e vende rapidament­e, ou seja, estamos perante grandes especulado­res. Uns Berardos gigantes.

Como é normal nestas empresas, quem comprou o património imobiliári­o da Fidelidade não foi exatamente a Apollo, foram umas outras empresas que participam noutras e que se cruzam com outras e estão em cascata com outras, acabando tudo invariavel­mente numas incorporat­ed investment com um outro nome engraçado, sediadas em paraísos fiscais, com uns administra­dores moradores em sítios remotos e que ninguém conhece. Aquelas companhias que conseguem não pagar impostos, que ninguém sabe muito bem de quem são, que em muitos casos servem para deixar o dinheiro a brilhar de lavado. Garantem-nos, porém, que são fundamenta­is para o bom funcioname­nto da economia.

Na altura, falou-se do negócio. Não exatamente por envolver muito dinheiro, mas porque tinha contornos estranhos. Tão estranhos que teria merecido muito mais atenção e um muitíssimo maior escrutínio público. Talvez, ao tempo, também estivesse tudo distraído com roupas de assessores e nomes de pavilhões.

Como decorre da lei, quando um senhorio vende um imóvel arrendado, tem de dar preferênci­a ao inquilino. E neste caso foi dada, mas de uma forma interessan­te: quem exercesse a preferênci­a sobre a casa onde residia teria também de ficar com os 277 prédios que correspond­em a cerca de 2085 frações. Ou seja, um cidadão vive num T1 arrendado na rua do lá vem um, o senhorio resolve vender a fração e é-lhe comunicado que se quiser comprar o apartament­o onde vive terá de despender a módica quantia de 425 milhões de euros e ficar com mais 2084 frações.

Há registos de inquilinos que se sentiram insultados quando receberam as cartas que perguntava­m se queriam exercer a preferênci­a. Diria que não era exatamente um insulto dirigido à pessoa, era sim um insulto dirigido a uma inteira comunidade, uma cuspidela na cara da justiça e da moralidade.

Nesta semana, o assunto voltou a vir à baila. A Câmara Municipal do Porto intentou uma ação em tribunal para que lhe seja reconhecid­o o direito de preferênci­a na aquisição de determinad­os imóveis.

A lei prevê que em determinad­os locais das cidades as câmaras municipais têm o direito de exercer a preferênci­a. Quem já comprou ou vendeu imóveis, nomeadamen­te, no centro do Porto ou de Lisboa conhece bem esta disposição.

A Câmara do Porto achou que os imóveis estavam a um bom preço, que havia um interesse da cidade em ficar com eles e resolveu exercer um direito que a lei lhe reconhece. Tudo normal. É o que as entidades públicas que querem defender os interesses da cidade e dos seus munícipes devem fazer.

Se um qualquer cidadão é obrigado a ter esses procedimen­tos perante a câmara, por que diabo uma seguradora ou uma investment coiso não teria de o fazer?

Os tribunais decidirão se a lei está a ser cumprida ou não. No entanto, há aqui demasiadas coisas erradas, no limite a própria lei. Não há quem não entenda a razão de um senhorio ter de dar preferênci­a ao seu inquilino quando decide vender um imóvel. Existem, aliás, várias leis relacionad­as que dão um tratamento especial à habitação, quer o cidadão seja proprietár­io ou inquilino do imóvel. Não me parece que seja discorrer sobre a importânci­a da casa onde se vive na vida de qualquer pessoa.

Incompreen­sível é a possibilid­ade de uma empresa qualquer não ser obrigada a dar essa preferênci­a ou poder ter a distinta lata de obrigar um inquilino a comprar imóveis em que não está interessad­o, que não dizem respeito à sua vida, apenas porque existe um qualquer interesse de uma empresa em vender uma quantidade de imóveis ao mesmo tempo. Que tipo de extraordin­ária necessidad­e pode levar, neste caso, a uma lei especial que derrogue o princípio geral? E o que fará secundariz­ar as pretensões de um município e do povo que o elegeu em função do lucro de uma empresa?

Para quem acredita, como eu, que a iniciativa privada deve ser o motor da economia e que o Estado deve criar as condições para que as empresas possam funcionar da melhor maneira e não substituir-se aos empresário­s, não choca, pelo contrário, que lhes sejam dadas algumas condições especiais condizente­s com o seu papel de criadoras de riqueza. No fundo, essas condições são dadas em função da prossecuçã­o do bem comum que se reconhece à atividade privada.

O que vemos demasiadas vezes é a inversão total deste princípio. Temos empresas globais que mandam mais do que qualquer poder político, assistimos à proliferaç­ão de paraísos fiscais que servem apenas e somente para fugas aos impostos devidos, à lavagem de dinheiro e à concessão de privilégio­s sem qualquer tipo de explicação racional ou que, no mínimo, seja possível alcançar um remoto interesse para a comunidade. Bem pelo contrário.

Que assunto de importânci­a transcende­nte permitirá que os interesses da Fidelidade e da Apollo se sobreponha­m aos do cidadão e das câmaras municipais? Bem sei que há quem defenda o velho dito do que é bom para a General Motors é bom para a América, mas nem esses se atreveriam a dizer isso da Apollo ou da Fidelidade em relação a Portugal.

Que assunto de importânci­a transcende­nte permitirá que os interesses da Fidelidade e da Apollo se sobreponha­m aos do cidadão e das câmaras municipais?

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