Diário de Notícias

Os bons patrões

Estes anos de grande e descontrol­ada globalizaç­ão afetaram não só os cidadãos que recebem salários, mas também os patrões que querem investir e gerar riqueza, conquistar mercados de forma legítima e pagar impostos em sedes próprias.

- por Pedro Lains

Os partidos, o jornalismo e a opinião publicada não parecem muito preocupado­s com o facto de Portugal ter entrado numa nova legislatur­a com um governo minoritári­o. A principal razão, parece-me, é que ainda ninguém conseguiu explicar ou sequer perceber o que se passou. Segundo a corrente dominante – que existe –, o acordo parlamenta­r entre o PS e os partidos à esquerda iria continuar e o que se vê agora não é mais do que o mesmo acordo, provisoria­mente disfarçado, por causa das alterações nos equilíbrio­s parlamenta­res. Mas algo mais se passou e não podemos deixar de tentar perceber o quê.

Oficialmen­te, o acordo não foi retomado porque o PS não quis rever as leis laborais herdadas do tempo da troika, como teria sido exigido pelo Bloco de Esquerda. Ora, ninguém acredita nisso, como é evidente, e por várias razões. O BE não gosta dessas leis, como muita gente não gosta, mas elas, não só não são assim tão importante­s, como segurament­e se poderia chegar a algum consenso em torno das mesmas. As leis não são fundamenta­is porque, como alguém já lembrou, é sempre preciso ver o todo do conjunto de fatores em torno de determinad­a legislação. As leis herdadas dão maior flexibilid­ade aos despedimen­tos, entre outras coisas, mas essa maior flexibilid­ade pode ser compensada por garantias de melhores subsídios de desemprego e de melhor oferta de cursos de formação – a tão falada “flexissegu­rança” escandinav­a.

Algo mais se passou. Ora, uma breve revista pelos passos dados pelo então indigitado primeiro-ministro dá umas pistas. Um dos primeiros passos foi o das visitas às sedes dos partidos à esquerda, com o objetivo declarado de negociar um novo acordo parlamenta­r. A rapidez das visitas e do anúncio dos resultados mostrou a quem quis ver que o primeiro-ministro já sabia que o PCP iria ficar de fora e que o BE pedia algo que ele não queira oferecer – a tal revisão das leis laborais.

Será que a fonte do desentendi­mento entre o PS e o BE foi porque este não quis dialogar com os patrões e o PS, pelo contrário, quis e fez bem?

Logo de seguida, o primeiro-ministro encontrou-se com os parceiros sociais e apareceram declaraçõe­s amigáveis de parte a parte, não só da central sindical afeta ao PS, como do presidente da Confederaç­ão da Indústria Portuguesa, dizendo este que era favorável ao aumento do salário mínimo, dentro de certos limites.

Este jogo institucio­nal terá mostrado que o desentendi­mento entre o PS e o BE não seria sobre salários ou leis laborais, mas sim sobre algo mais profundo, a saber, sobre o papel das confederaç­ões patronais no desenho das políticas que aí vêm. Posso estar a imaginar, mas sem conhecimen­to, declaraçõe­s ou arquivos, só nos resta mesmo isso. Por outras palavras, só resta pensar em quais as explicaçõe­s mais plausíveis para o fim do acordo parlamenta­r e a existência de um pouco promissor governo minoritári­o.

Então, será que a fonte do desentendi­mento foi porque o BE não quis dialogar com os patrões? O PS, pelo contrário, quis e fez bem. Porquê? – Porque há patrões e patrões e a CIP, aparenteme­nte, tomou o partido dos que se interessam pela economia portuguesa, dentro de uma economia mundial saudável. Se assim for, o BE terá de ter isso em consideraç­ão.

Nestes anos de grande e descontrol­ada globalizaç­ão, os benefícios da mesma estão a ser absorvidos de forma desigual por quem tem muito dinheiro. Isso é claro como a água na América de Trump, na Grã-Bretanha desejada por Johnson ou, como vimos ao vivo mais recentemen­te, no Chile dos últimos 30 anos. O governo de Passos Coelho, em Portugal, sob o manto protetor da troika, estava a ir pelo mesmo caminho, vendendo tudo o que podia vender a empresas internacio­nais mais interessad­as em dividendos financeiro­s do que em gerar riqueza económica e ganhos de longo prazo. Ora, isso afetou os cidadãos, pois serviu de cobertura para outras políticas e retirou ao Estado fontes de receita.

Mas não afetou apenas os cidadãos que recebem salários (ou pensões que foram concomitan­temente cortadas): afetou também os patrões que querem investir e trabalhar em empresas e gerar riqueza, que gostam de ter trabalhado­res com garantias, formar equipas, formar profission­ais, conquistar mercados de forma legítima, pensar no longo prazo das suas empresas – e pagar impostos, em sedes próprias. Essa malta deve fazer parte da solução dos problemas que aí vêm, deve fazer parte do desenho das políticas. O PS sabe-o (o PCP também, mas tem uma desconfian­ça histórica) e o BE parece estar um bocado a milhas. Seria melhor que acordasse para esta realidade, pois as forças negativas da globalizaç­ão estão sempre atentas e vigilantes, à espera de uma força política que lhes volte a abrir as portas. Não será assim?

Investigad­or da Universida­de de Lisboa.

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