Os bons patrões
Estes anos de grande e descontrolada globalização afetaram não só os cidadãos que recebem salários, mas também os patrões que querem investir e gerar riqueza, conquistar mercados de forma legítima e pagar impostos em sedes próprias.
Os partidos, o jornalismo e a opinião publicada não parecem muito preocupados com o facto de Portugal ter entrado numa nova legislatura com um governo minoritário. A principal razão, parece-me, é que ainda ninguém conseguiu explicar ou sequer perceber o que se passou. Segundo a corrente dominante – que existe –, o acordo parlamentar entre o PS e os partidos à esquerda iria continuar e o que se vê agora não é mais do que o mesmo acordo, provisoriamente disfarçado, por causa das alterações nos equilíbrios parlamentares. Mas algo mais se passou e não podemos deixar de tentar perceber o quê.
Oficialmente, o acordo não foi retomado porque o PS não quis rever as leis laborais herdadas do tempo da troika, como teria sido exigido pelo Bloco de Esquerda. Ora, ninguém acredita nisso, como é evidente, e por várias razões. O BE não gosta dessas leis, como muita gente não gosta, mas elas, não só não são assim tão importantes, como seguramente se poderia chegar a algum consenso em torno das mesmas. As leis não são fundamentais porque, como alguém já lembrou, é sempre preciso ver o todo do conjunto de fatores em torno de determinada legislação. As leis herdadas dão maior flexibilidade aos despedimentos, entre outras coisas, mas essa maior flexibilidade pode ser compensada por garantias de melhores subsídios de desemprego e de melhor oferta de cursos de formação – a tão falada “flexissegurança” escandinava.
Algo mais se passou. Ora, uma breve revista pelos passos dados pelo então indigitado primeiro-ministro dá umas pistas. Um dos primeiros passos foi o das visitas às sedes dos partidos à esquerda, com o objetivo declarado de negociar um novo acordo parlamentar. A rapidez das visitas e do anúncio dos resultados mostrou a quem quis ver que o primeiro-ministro já sabia que o PCP iria ficar de fora e que o BE pedia algo que ele não queira oferecer – a tal revisão das leis laborais.
Será que a fonte do desentendimento entre o PS e o BE foi porque este não quis dialogar com os patrões e o PS, pelo contrário, quis e fez bem?
Logo de seguida, o primeiro-ministro encontrou-se com os parceiros sociais e apareceram declarações amigáveis de parte a parte, não só da central sindical afeta ao PS, como do presidente da Confederação da Indústria Portuguesa, dizendo este que era favorável ao aumento do salário mínimo, dentro de certos limites.
Este jogo institucional terá mostrado que o desentendimento entre o PS e o BE não seria sobre salários ou leis laborais, mas sim sobre algo mais profundo, a saber, sobre o papel das confederações patronais no desenho das políticas que aí vêm. Posso estar a imaginar, mas sem conhecimento, declarações ou arquivos, só nos resta mesmo isso. Por outras palavras, só resta pensar em quais as explicações mais plausíveis para o fim do acordo parlamentar e a existência de um pouco promissor governo minoritário.
Então, será que a fonte do desentendimento foi porque o BE não quis dialogar com os patrões? O PS, pelo contrário, quis e fez bem. Porquê? – Porque há patrões e patrões e a CIP, aparentemente, tomou o partido dos que se interessam pela economia portuguesa, dentro de uma economia mundial saudável. Se assim for, o BE terá de ter isso em consideração.
Nestes anos de grande e descontrolada globalização, os benefícios da mesma estão a ser absorvidos de forma desigual por quem tem muito dinheiro. Isso é claro como a água na América de Trump, na Grã-Bretanha desejada por Johnson ou, como vimos ao vivo mais recentemente, no Chile dos últimos 30 anos. O governo de Passos Coelho, em Portugal, sob o manto protetor da troika, estava a ir pelo mesmo caminho, vendendo tudo o que podia vender a empresas internacionais mais interessadas em dividendos financeiros do que em gerar riqueza económica e ganhos de longo prazo. Ora, isso afetou os cidadãos, pois serviu de cobertura para outras políticas e retirou ao Estado fontes de receita.
Mas não afetou apenas os cidadãos que recebem salários (ou pensões que foram concomitantemente cortadas): afetou também os patrões que querem investir e trabalhar em empresas e gerar riqueza, que gostam de ter trabalhadores com garantias, formar equipas, formar profissionais, conquistar mercados de forma legítima, pensar no longo prazo das suas empresas – e pagar impostos, em sedes próprias. Essa malta deve fazer parte da solução dos problemas que aí vêm, deve fazer parte do desenho das políticas. O PS sabe-o (o PCP também, mas tem uma desconfiança histórica) e o BE parece estar um bocado a milhas. Seria melhor que acordasse para esta realidade, pois as forças negativas da globalização estão sempre atentas e vigilantes, à espera de uma força política que lhes volte a abrir as portas. Não será assim?
Investigador da Universidade de Lisboa.