Não se muda já como soía
Se soubermos esperar uns dias, sem medo do espelho, veremos como as nossas perceções se transformam, orgânicas, sem pedir autorização. Num espaço de dias, por vezes de horas, mudamos de opinião, de sensação, sobretudo num espaço onde, a qualquer momento, sem mas nem porquê, alguém nos interpela, nos confronta, nos provoca, como é o espaço das redes sociais. Adoramos o que odiámos, toleramos o que estranhámos, desejamos o que rejeitámos, simpatizamos com o que desdenhámos, a um ritmo estranhamente veloz. Nada em nós, nem mesmo o amor, se cristaliza, irreversível, imutável.
Não é que deixemos de amar, de querer, mas mesmo esse amar e esse querer se vão aclimatando ao que em nós se vai revelando, enformando.
Nada em nós, muito menos as nossas perceções sobre o mundo, sobre o quotidiano, sobre o sentir político, se deixa ficar por muito tempo. Não é preciso muito, sequer: porque alguém disse alguma coisa, porque quem disse alguma coisa nos causou repulsa, porque o sol apareceu mais tarde, porque acordámos a chorar, porque nos imaginámos a sofrer, tudo pode intercetar o caminho das nossas opiniões, dos nossos virulentos julgamentos.
Talvez nos custe aceitar, nesse espelho a que nunca nos sujeitamos, o veloz ritmo das nossas tergiversações, a forma como valem afinal de pouco as supinas certezas que trazíamos de ontem. Não se trata de aceitar um qualquer relativismo, como se do amor à morte, do sim ao não, não existissem milhões de estações e um impercetível picotado que as vai juntando e que vamos atravessando. Trata-se apenas de encontrar em nós a humaníssima condição de quem não sabe, não vê, não tem a verdade nas mãos, e que essa busca, essa sede, obriga à mudança.
A esse respeito, em forma de paradoxo, nada mudou desde que LuísVaz de Camões nos deixou o Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades: Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.
O que talvez tenha mudado, desde então, é a possibilidade que temos de ir gravando as nossas certezas, de as deixarmos escritas, vocais, prontas a engrossar comoções e indignações, como se fossem um caderno de encargos, um guia para políticos e aspirantes a políticos.
E é aí, quando impressas num mural, com a certeza do momento e a determinação do segundo, que elas, não passando na maioria dos casos de efémeras declarações, podem ser confundidas com pontos de chegada, inabaláveis determinações.
A conformação da atividade política ao sentir fátuo das redes sociais (por iniciativa própria ou por pressão mediática) é talvez uma das maiores ilusões da política moderna. E não está aqui em causa uma qualquer aversão geracional às redes sociais, onde me movo há anos e anos com especial gosto.
Está apenas em causa a convicção, que vem desde Camões, de que tudo é composto de mudança, e que as exigências de hoje serão contraditadas pelas de amanhã.