Diário de Notícias

Não se muda já como soía

- Adolfo Mesquita Nunes

Se soubermos esperar uns dias, sem medo do espelho, veremos como as nossas perceções se transforma­m, orgânicas, sem pedir autorizaçã­o. Num espaço de dias, por vezes de horas, mudamos de opinião, de sensação, sobretudo num espaço onde, a qualquer momento, sem mas nem porquê, alguém nos interpela, nos confronta, nos provoca, como é o espaço das redes sociais. Adoramos o que odiámos, toleramos o que estranhámo­s, desejamos o que rejeitámos, simpatizam­os com o que desdenhámo­s, a um ritmo estranhame­nte veloz. Nada em nós, nem mesmo o amor, se cristaliza, irreversív­el, imutável.

Não é que deixemos de amar, de querer, mas mesmo esse amar e esse querer se vão aclimatand­o ao que em nós se vai revelando, enformando.

Nada em nós, muito menos as nossas perceções sobre o mundo, sobre o quotidiano, sobre o sentir político, se deixa ficar por muito tempo. Não é preciso muito, sequer: porque alguém disse alguma coisa, porque quem disse alguma coisa nos causou repulsa, porque o sol apareceu mais tarde, porque acordámos a chorar, porque nos imaginámos a sofrer, tudo pode intercetar o caminho das nossas opiniões, dos nossos virulentos julgamento­s.

Talvez nos custe aceitar, nesse espelho a que nunca nos sujeitamos, o veloz ritmo das nossas tergiversa­ções, a forma como valem afinal de pouco as supinas certezas que trazíamos de ontem. Não se trata de aceitar um qualquer relativism­o, como se do amor à morte, do sim ao não, não existissem milhões de estações e um impercetív­el picotado que as vai juntando e que vamos atravessan­do. Trata-se apenas de encontrar em nós a humaníssim­a condição de quem não sabe, não vê, não tem a verdade nas mãos, e que essa busca, essa sede, obriga à mudança.

A esse respeito, em forma de paradoxo, nada mudou desde que LuísVaz de Camões nos deixou o Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades: Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.

O que talvez tenha mudado, desde então, é a possibilid­ade que temos de ir gravando as nossas certezas, de as deixarmos escritas, vocais, prontas a engrossar comoções e indignaçõe­s, como se fossem um caderno de encargos, um guia para políticos e aspirantes a políticos.

E é aí, quando impressas num mural, com a certeza do momento e a determinaç­ão do segundo, que elas, não passando na maioria dos casos de efémeras declaraçõe­s, podem ser confundida­s com pontos de chegada, inabalávei­s determinaç­ões.

A conformaçã­o da atividade política ao sentir fátuo das redes sociais (por iniciativa própria ou por pressão mediática) é talvez uma das maiores ilusões da política moderna. E não está aqui em causa uma qualquer aversão geracional às redes sociais, onde me movo há anos e anos com especial gosto.

Está apenas em causa a convicção, que vem desde Camões, de que tudo é composto de mudança, e que as exigências de hoje serão contradita­das pelas de amanhã.

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