Em terreno sagrado
Os filmes de Pedro Costa continuam a distinguir-se por um peculiar e paradoxal realismo: com o novo e fascinante Vitalina Varela, descobrimos como o próprio cinema pode aproximar-se da noção de transcendência.
Ser ou não ser cinéfilo, eis a questão. A cumplicidade que liga os cinéfilos não resulta de qualquer unanimidade de pontos de vista, muito menos de qualquer sistema fechado de valorização dos filmes. Um cinéfilo reconhece-se noutro cinéfilo quando, por exemplo, através de um filme se descobre confrontado com a questão mais primitiva: o que é o cinema? Questão fundadora do cinema moderno, como bem sabemos. Ou melhor, da modernidade cinematográfica. Qu’est-ce que le cinéma?, justamente, é a pergunta emblemática associada à obra de André Bazin (1918-1958), mentor e mestre da nova vaga francesa.
Face ao novo filme de Pedro Costa, Vitalina Varela, justifica-se que voltemos a abraçar o primitivismo dessa pergunta. E, antes do mais, por uma razão eminentemente social. Observe-se a pequenez conceptual que assombra a vida contemporânea do cinema: assistimos ao triunfo de um marketing poderoso que conseguiu impor a ideia segundo a qual o cinema apenas acontece quando nele se exibe alguma proeza tecnológica, num processo de normalização narrativa de que algumas personagens de super-heróis seriam ilustração obrigatória e símbolo único. É verdade que, de vez em quando, tal processo exibe as suas clivagens e gera admiráveis objetos de cinema. Não é isso que está em causa. O que está em causa é o recalcado de tudo isso. A saber: enquanto espectadores, será que ainda estamos disponíveis para lidar com imagens (e sons) que resistam a qualquer formatação mediática?
De Ossos (1997) a Cavalo Dinheiro (2014), tal resistência está presente em todo o trabalho de Pedro Costa. Com um paradoxo que Vitalina Varela relança e reforça. Esta história de uma mulher de Cabo Verde que esperou 25 anos para viajar para Portugal, chegando três dias depois do funeral do marido, começa por exibir sinais de um realismo muito cru, quase cruel. Mas não é um realismo documental, muito menos de reportagem – será preciso sublinhar que nada disto tem que ver com a aceleração “naturalista” de muitas linguagens televisivas?
O realismo de Pedro Costa é transcendental. Classificação problemática, sem dúvida. Não porque ignoremos o desejo de mostrar inerente a qualquer gesto realista, antes porque neste tempo em que tudo é quantificado (dos likes virtuais à percentagem de posse de bola no futebol), enfrentamos a palavra transcendência através de um misto de menosprezo e temor. Ora, a transcendência começa na carência da própria imagem, é a consciência humilde, mas obstinada, de que não vemos tudo.
Pedro Costa filma as coisas do mundo – a textura da pele de Vitalina Varela, o brilho dos seus olhos, a rugosidade das paredes das casas ou o fulgor efémero de uma mão a tocar um poste de madeira –, levando-nos a sentir que nenhuma imagem esgota a complexidade dos seres. Há sempre algo mais, algo que os transcende, precisamente, e que o cinema consagra, mesmo quando já não o sabe nomear. Sobretudo porque não o sabe nomear.
Acontece que essa transcendência não é opaca nem agressiva, antes luminosa e habitável. Porquê? Porque acreditamos nela. Acreditamos sinceramente (apetece dizer: ingenuamente) no poder visceral do cinema para nos devolver a alegria de alguma espécie de crença. Reencontramos, assim, algo da desarmante candura que Ludwig Wittgenstein condensava numa das suas notas finais: “Se houvesse um verbo com o significado de acreditar falsamente, não teria a primeira pessoa do presente do indicativo” (Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia, Gulbenkian, 2014).
Acreditamos verdadeiramente, como só é possível acreditar – eis a redundância que importa celebrar. Distanciemo-nos, por isso, dos discursos paternalistas que possam tentar encerrar VitalinaVarela nas suas virtudes “sociológicas”. Em boa verdade, com este filme, mais do que em qualquer outro, Pedro Costa parece visar aquilo que a sociedade tende a evitar para definir as suas necessárias leis. A saber: a possibilidade de conceber as relações humanas a partir de uma revalorização do sagrado. Mais ainda: um sagrado cinéfilo, exterior a qualquer religião.