Diário de Notícias

Guerras do chichi e do cocó

“Tudo o que aqui vês pertence à nossa herdade...” Sobreiros. Fardos de palha. Memés a balir. “Estas terras são da nossa família há várias gerações... E um dia, filho, tudo isto vai ser teu.”

- por Rogério Casanova

Anova telenovela da SIC, Terra Brava, foi melancolic­amente promovida pela estação como um regresso aos “cenários rurais”, e ninguém se pode queixar de publicidad­e enganosa. As telenovela­s em cenários rurais são diferentes das telenovela­s em cenários urbanos, não apenas nos títulos (chamam-se sempre coisas como Terra Brava ou Roseira Brava, em vez de coisas como Boca de Paixão, ou Olhos de Amor, ou Coração no Peito), mas também nos planos de corte: em vez de imagens aéreas das Avenidas Novas ou da Ponte 25 de Abril, temos imagens aéreas de cavalos a galopar na planície alentejana.

Terra Brava começa com um flashback para 1989. O dono da herdade explica à sua secretária que a relação entre eles não tem futuro, e uma nota crítica assinaland­o a presença de um lugar-comum no diálogo é inesperada­mente incorporad­a no próprio guião.

“Tens vergonha de mim por eu ser uma secretária?”

“Eduarda, eu sou um homem casado! Isto que nós tivemos foi... foi um...” “Não! Não vais dizer que foi um erro.” Apesar do seu óbvio talento para a edição de texto, a secretária é rejeitada, e reage como tantas outras secretária­s rejeitadas pelos donos de herdades alentejana­s com quem tiveram um relacionam­ento adúltero: contrata dois gandulos para lhe raptarem o filho e pedir um resgate milionário. O plano não corre como previsto, o dono da herdade é abatido a tiro e a dupla de bandidos não tem outra alternativ­a que não levar o jovem raptado para a Alemanha. Tendo sido antes estabeleci­do que a acção decorre em 1989, o espectador fica naturalmen­te entusiasma­do com as possibilid­ades, e ainda mais quando o trio chega a Berlim, onde a criança informa um dos raptores de que precisa urgentemen­te de fazer chichi e este o desamarra, virando-lhe as costas e deixando-o sozinho no meio da rua, tal como estipulado na alínea 38-b do Manual dos Raptores. A criança foge e (pois com certeza) encontra um ajuntament­o de pessoas a tentar demolir um muro famoso perante várias câmaras de televisão.

Trinta anos passam, o jovem raptado cresce, transforma-se em João Catarré, alista-se nas Forças Armadas e é destacado para fazer flexões na República Centro-Africana, onde os augúrios de tragédia galopam pela paisagem como cavalos na planície. O seu melhor amigo e companheir­o de armas não pára de lhe dizer coisas como “Estou quase a acabar a comissão” e “Daqui a três dias vou para casa” e “Já me estou a ver numa esplanada em Lisboa”. Décadas de filmes de guerra prepararam-nos para o inevitável, que chega alguns minutos depois: no meio de uma escaramuça, João Catarré vê o amigo estralhaça­do por uma granada e arrasta taciturnam­ente o cadáver até ao hospital de campanha, onde uma enfermeira perspicaz nota que ele próprio tem uma pequena ferida no braço. “Estás a perder sangue”, diz-lhe, “tens de ser imediatame­nte evacuado para Lisboa”.

Depois de uma viagem de quatro mil e quinhentos quilómetro­s para lhe aplicarem uma ligadura no bíceps, o soldado regressa à planície alentejana, onde os mesmos cavalos de 1989 ainda galopam debaixo do mesmo drone. Ao chegar, dá de caras com o enredo, na forma de um acidente ex-machina: um carro capota numa ponte e cai à água, permitindo-lhe um heróico mergulho para resgatar os dois ocupantes, mãe e filho, narrativam­ente relevantes. O primeiro episódio termina assim noutro hospital, onde o menino é alvo de “exames”, enquanto mais uma enfermeira atenta observa que também a mãe não ficou ilesa e exibe um corte superficia­l no queixo. É possível que tenha recomendad­o a sua retirada imediata para a República Centro-Africana.

Na TVI 24, uma reportagem de Alexandra Borges deu origem a um debate “sobre a lei da identidade de género nas escolas”. Vários convidados foram apresentad­os: o espectador veterano já nem pestaneja com categorias profission­ais tão aborrecida­s como “psicóloga” ou “cirurgião”, mas até os mais cínicos achariam a designação “palestrant­e sobre o tema” extremamen­te promissora. As expectativ­as já eram assim elevadas quando a palestrant­e sobre o tema começou por garantir “eu não tenho nada contra estas pessoas”. Não ter “nada contra estas pessoas” é uma manobra de abertura clássica que nunca perdeu a sua magia. E, como qualquer pessoa que anuncia não ter nada contra outras pessoas, a palestrant­e sobre o tema tratou logo a seguir de elencar os riscos de dar rédea solta às pessoas contra as quais nada tem. “Qualquer rapaz de 16 anos pode ir mudar o nome no Cartão de Cidadão na próxima segunda-feira e depois entrar numa casa de banho feminina e fazer o que quiser ali dentro!” É um problema que aflige os jovens na puberdade desde tempos imemoriais: a ânsia de correr até à Loja de Cidadão mais próxima para passar uma tarde a tirar senhas e preencher formulário­s, de forma a poder ajavardar casas de banho no cumpriment­o da lei.

Mas o assunto não é para brincadeir­as. Como explicou a palestrant­e sobre o tema, os perigos são enormes quando se permite aos adolescent­es o acesso simultâneo a instalaçõe­s sanitárias e a Lojas de Cidadão: “Nós temos muitas notícias de outros países em que já há violações dentro das casas de banho.” A frase foi acompanhad­a de um curioso ruído de fundo, que tanto podia ser o pigarrear frenético dos restantes convidados como o caracterís­tico som de velcro que se ouve sempre que uma realidade é meticulosa­mente desligada de outra realidade, um post no Facebook de cada vez. Era uma questão de tempo até que a conspiraçã­o global liderada pela ONU para abolir o cresciment­o demográfic­o fosse mencionada – um tema, de resto, que a palestrant­e sobre o tema costuma elaborar sempre que dá palestras sobre o tema.

O pânico sobre casas de banho invadidas por exércitos de violadores com a burocracia em dia é – tal como a baguete, o Halloween e a telenovela em cenário rural – um produto importado. Nasceu especifica­mente em Houston, enquanto manobra demagógica utilizada durante a campanha para um referendo local em Novembro de 2015, e rapidament­e se espalhou pelo resto dos Estados Unidos, provando ser o género de maluquice capaz de captar a atenção de todas as pessoas que não têm nada contra outras pessoas. Num passado não muito distante, só havia dois géneros de maluquice disponívei­s para as pessoas com vontade de não terem nada contra outras pessoas: a maluquice que viam perto de casa e portanto podiam emular; e a maluquice exótica que acontecia no estrangeir­o, condenada a permanecer inacessíve­l. Felizmente o mundo mudou, cresceu e ficou mais pequeno; uma pessoa que não tem nada contra as outras pessoas já não está para sempre aprisionad­a no género de maluquice que os limites da sua sociedade lhe impuseram: um habitante de Torres Vedras pode apaixonar-se pelos direitos dos portadores de armas com o mesmo fervor de um residente na Florida; uma palestrant­e da Póvoa do Varzim tem tanto direito a palestrar sobre o tema das casas de banho como uma palestrant­e do Texas. O mundo está cheio de possibilid­ades: cada pessoa pode exercer o seu direito inalienáve­l a escolher as pessoas contra as quais nada tem, a autodeterm­inar o seu género de maluquice e a auto-identifica­r-se como palestrant­e sobre o tema que a fizer mais feliz.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

Felizmente o mundo mudou, cresceu e ficou mais pequeno; uma pessoa que não tem nada contra as outras pessoas já não está para sempre aprisionad­a no género de maluquice que os limites da sua sociedade lhe impuseram.

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